UMA FESTA CASAMENTEIRA NO INTERIOR DO AMAZONAS

UMA FESTA CASAMENTEIRA NO INTERIOR DO AMAZONAS

Autor: Moyses Laredo

Na década de 60 numa das entregas de quadros, da Agência Real, no Cambixe, interior do Amazonas, sempre pousava na casa do Tineri (tio Nery) amigo do meu pai e morador local, ficamos amigos de longas conversas, sempre trazia encomendas de Manaus para ele, coisas simples, um certo dia reforçou o convite para uma festa, aliás convite antigo, a festa era um acontecimento raro naquela região só ocorria de dois em dois anos. A tão afamada festa, há muito esperada pelos solteirões do pedaço, representava a oportunidade de arrumar casamentos, essa era a única maneira de conhecerem seus parceiros, não tinha outro jeito. Todos trabalhavam em suas lavouras, nas roças, na lida com o gado, na casa, no preparo do campo etc, ninguém saia de casa durante o dia, a noite todos adormeciam cedo, como diziam, junto com as galinhas (que se recolhem ao entardecer) pensando na lida do dia seguinte, não contavam os sábados, domingos e feriados, todos os dias era de lida, as vacas tinham que ser ordenhados, os animais alimentados e cuidados diariamente, o campo roçado, por isso não tinha jeito de conhecer alguém.

Dessa famosa festa já me contaram muitas vezes, em todas viagens sempre alguém comentava, aquilo me despertou a curiosidade em conhecer. Certo dia estava eu na casa do Tineri, tinha acabado de fazer umas entregas de quadros, cansado de ter andado a procura dos endereços, como se sabe no interior, as casas distam uma das outras pouco mais de dois quilômetros, com peso dos quadros dificultava ainda mais o meu trabalho, acabei cedo fui tomar um banho de cuia, (da árvore conhecida como coité ou cuieira), com medo de piranha e candiru, na beira do “Paraná (braço de um rio caudaloso, separado do curso principal que enlaçava uma das margens formando uma ou várias ilhas) do Cambixe”, na verdade o grande Rio Amazonas dava um abraço fraterno naquele pedaço de terra.

Da casa do Tineri se ouvia o som das embarcações no Paranã (como era conhecido) ficava pouco mais que uma jarda (91,44m) da beira. Da janela se viam os mastros de navegação com suas luzes coloridas se aproximando lentamente, quando paravam se visse a luz verde de bombordo (esquerda) significava que ele estava chegando de Manaus, se visse a encarnada (vermelha) de boreste (direita), estava indo, nem dava pra se ver os barcos, só os mastros. Quem ia viajar se apressava de acordo com o som ouvido à distância, quando mais fraco mais longe o barco, quanto mais alto, mais perto. Os moradores conheciam seus “motores” pelos roncos que faziam, corriam para esperar no porto improvisado com malas e trouxas.

Nesse dia quando a santa mãezinha me chamou para comer uma boia, varei o corredor dos quartos e me dei direto na cozinha a única parte da casa coberta com palha, a mesa arrumada, o fogão a lenha aceso ao fundo, janela do girau aberta, burburinho normal de almoço, nada de toalha, só os pratos de esmalte sobre a tábua da mesa, nada de talheres apenas uma colher pra cada prato, a cuia de farinha e o tacho esfumaçante de galinha no centro da mesa feita de uma tora só cortada ao meio e emborcada bem fixada nas pernas de cavalete que se estendia para bancos fixos corridos de cada lado. Foi ai que já notei o Tineri animado, muito conversador, bateu nas minhas costas e disse, - “Que-ir-mais-eu-Muises, vai ter uma festa hoje a noite, ocê não queria conhecer?” – na hora, sem muito pensar e nem saber aonde seria – disse: - “Vamos sim Tineri!” Naquele momento o meu maior interesse era comer, estava esfomeado, ali diante de mim estava um guisado de galinha caipira com macaxeira cozida, jurumum, maxixe e feijão de corda plantado por ele, o resto do tempero veio do canteiro da velhinha, tudo feito por ela, sem ajudante, em panela de ferro com fogo de lenha. Acompanhava arroz e farinhada da grossa torrada na casa de farinha do terreiro. A resposta ao Tineri tinha que ser rápida a fim de me atracar logo com a boia que cheirava demais.

Por volta das 16:00h vi o Tineri todo arrumado tomado banho, se penteando passando brilhantina no cabelo diante de um espelhinho equilibrado sobre a pernamanca da travessa do meio, da parede do corredor, que ele se agachava para se ver inteiro no minúsculo espelhinho, - àquela altura, já bastante animando para a festa, enquanto a sua santa mãezinha, com passadas de mão em suas costas, retirava fiapos de cabelos, teias de aranhas, caspa, pedaços de palhas do telhado, o que fosse que estava sobre sua camisa engomada e passada à ferro de carvão à brasa. Eu me espantei porque nunca tinha visto festa de dia? Ele me disse que gostava de chegar cedo para prosear com o pessoal. Que nada, pensei eu, ele queria mesmo era ver no claro a mulherada que apareceriam por lá, esperto!

Às 4:30 h da tarde saímos em pisadas firmes, ele na frente e eu atrás, rumo de cima pela trilha da mata dos fundos, por trás da casa dele, mais adiante desviamos pelo pasto beirando a cerca até a tal trilha que levaria a festa, como ele me dissera. Achei que estávamos perto, a trilha começou seca para em seguida aparecerem os atoleiros, continuou assim, sempre enlameada cheia de poças que me obrigava a ficar pulando para desviar delas, aumentando o meu percurso, enquanto que o Tineri ia sempre em linha reta. Mais adiante levantou o primeiro arame de cerca de uma série de dez, até ali eu conhecia bem tinha andado com o pangaré dele por lá, então o Tineri me falou, - “Tira o sapato Muises, depois quando a gente chegar lá, nóis lava os pé e tu calça ele de novo”. Não me pareceu boa idéia andar descalço logo mais à noite naquela escuridão, sem ver onde pisava, por isso permaneci calçado, o coração começou a apertar!

A noite logo chegou, o Tineri homem alto de rugas profundas gravadas perenemente no rosto queimado de sol, tinha passadas largas e logo se distanciava, quase sumindo nas curvas, nunca olhava para trás e vez por outra, eu precisava apressar o passo e até dar uma corridinha para me aproximar mais, era ele quem levava a única lanterna, as pilhas já fracas mal alumiava o seu próprio caminho e ele ainda apagava de vez em quando para poupa-las, até entendi que era para a nossa volta. Eu atrás seguindo-o, sabe-se lá aonde pisava para acompanhar suas passadas largas que davam sempre três das minhas, o solado do seu pé batia pesado no chão que ecoava no silencio da noite, parecia o som de um longínquo bate-estacas, espirrava lama pra todos os lados, mesmo querendo ficar perto, tinha que manter certa distância, quem fosse podre que se lixe, o Tineri era como um D-9, arrastava tudo nos peitos.

Quando a gente tinha andado quase duas horas mata à dentro, já escuro, arrisquei perguntar, mantendo ainda a postura para não dar impressão de fraqueza, - “Ainda falta muito? Tineri disse – “Não! É logo ali, coisa de mais adiante um pouco e apontava com os beiços na direção. Me fez lembrar da tal “légua de beiço” que tanto falavam nas conversas que tinha com os outros passageiros para passar o tempo, em cima do toldo do “motor de linha” que me levava ao Cambixe. Se ele levantasse a venta (nariz) duas vezes era coisa de 3 e pouco quilômetros, se levantava quatro vezes, eram perto de sete quilômetros e assim por diante.

O Tineri em todas as vezes que perguntei, ele levantava a venta duas vezes esticando o beiço junto... isso dava de tempo em tempo, sempre mais três quilômetros à frente, pirei! Eu já estava completamente exausto, suava à bica, camisa aberta, com todo tipo de carrapicho pregado na calça, escorreguei umas tantas vezes os sapatos encharcados, os pés dançavam dentro deles, tinha medo deles se prenderem na lama e saírem dos pés, estava já ao ponto de parar e me sentar no chão, mais aonde? Se tudo que eu via era completa escuridão, mato, barulho de bicho e mugidos naquela altura da noite, de jeito nenhum! tinha que continuar seguindo-o de qualquer jeito, nem que me arrastasse, que aflição, onde me meti, puta-que-pariu!

O fato é que depois desse interminável sofrimento, chegamos a tal festa finalmente, olhei para o relógio agora já passava das dez da noite. Imagine o quanto andamos, talvez coisa de dez a quinze quilômetros seguramente. A festa já tinha começado desde as 7 da noite. Fiquei um tempão bufando e me limpando, lavei os sapatos e os pés com a água das cabaças. Os donos da festa, deixavam no pé da escada umas cuias grandes (cabaças) com água, justamente para essa finalidade, depois fiquei por algum tempo sentado num banquinho descansando secando a roupa no corpo e tirando os carrapatos da calça.

O local parecia um chapéu de palha bem grande, todo aberto sem paredes, piso de chão batido, coberto com palha, banco de madeira pelos lados, só era livre o salão bem no centro que todos chamavam de “terreiro”, tudo muito bem iluminado por muitas lamparinas penduradas nos barrotes, bem claro mesmo, parecendo uma feira, estava lotado de pessoas e chegavam mais de todos os cantos.

Sentado, aproveitei para observar os tipos. Comecei pelos tocadores. Os instrumentos, um violão curto quase um banjo, todo lascado só duas cordas, um triângulo metálico de cascalheiro, torcido com o tempo de uso e descascado onde sempre era ferido pela baqueta e um pandeiro de couro de gato legítimo (me disse o Pandeiristas, orgulhoso) faltando alguns guizos, isso era toda a “banda”. Os tais famosos tocadores vieram de mais longe que eu, eram conhecidos e respeitados.

O mesmo ritmo foi do começo ao fim da festa, não tinha melodia, eles repetiam uns acordes subindo o tom depois descendo, para repetir tudo na mesma cadência, isso fazia coro com o compasso do som dos chiados das chinelas, se arrastando no chão de barro batido, o poeiral que levantava era grande no meio do salão dois pra lá e dois pra cá, muito simples mesmo, nada complicado, todos aprendiam rápido, assim era toda a coreografia. Ninguém cantava nada, os tocadores podiam parar um pouquinho que a música já entranhada na cabeça que ninguém notava e continuavam agarradinhos dançando. Acho que qualquer um podia ser tocador, nenhum acorde mudou durante umas sete horas que a festa durou. Vez por outra um tocador se ausentava, para dar uma mijadinha ou um golinho de aluá (bebida fermentada da casca do abacaxi com médio teor de álcool) abundante na festa e de baixo custo, servido a todos bom para aguentar o tranco para logo retomar seu lugar.

O Tineri de vez em quando aparecia na minha frente rodopiando eu o acompanhava com os olhos para garantir a minha volta porque sem ele eu estava perdido naquele lugar distante. Naquela hora eu ainda tinha esperança que retornaria na mesma noite, o meu “motor” passava as 10:00h da manhã. Vi o Tineri por várias vezes sempre a rodopiar, não mudava o passo, só mudava de mulher, penso que as mulheres não aguentavam dançar muito tempo com ele, deixava as comadres tontas e meladas de suor, eu acho, mesmo assim parecia estar no céu, o sorriso não descolava do seu rosto, aqui acolá, passava sempre em frente de onde eu estava não tinha jeito mesmo, o lugar era pequeno.

Depois, olhei detalhadamente para os pares dançantes, eram pessoas simples e do lugar, alguns enrolavam a bainha da calça, outros nem tiravam o chapéu para dançar, uns descalços outros com alparcatas, as mulheres de saia rodada, todos procurando um par, nada de saliências, tudo muito sério revestido de objetividade. Quem tinha filha “encalhada” levava pra festa, mulher sem marido, viúvas, homens solteiros, homens viúvos valia tudo, a regra era conhecer, dançar e fazer o pedido. – Quer morar mais eu? Daí a casar era bem rapidinho, como diziam por lá, ligeiro e avexado!

Fiquei abismado com a resistência do Tineri, ele não parou um minuto desde a hora em que chegamos, não o vi sentar ou descansar sequer um instante. A pressa era toda dele, quem sabe o aperto que passava sozinho onde morava sem muié, como dizia a sua santa mãezinha, “minino se case logo, tu tá ficano véio, não tem ninguém para cuidá de tu” eu acho que o Tineri já era quase um cinquentão imagino pela sua aparência. Na festa nem arrisquei dançar, não aguentaria os pisões nos pés já bastante doloridos pela caminhada, além do mais, eu não podia atrapalhar quem estava a fim de se dar bem, sempre me lembrava de que eu também estava na conta delas para casar. Por lá, o negócio era sério, a festa era pra arrumar casamento mesmo! Se o “caba” escorregasse para fora do terreiro ele já saía de lá casado. Era um casamento bem simples mesmo, o noivo, a noiva, o delegado e o revólver e pronto! estava feito! O pior é que todos esses ingredientes estavam juntos na festa. Todo o cuidado é pouco nessas horas, nada de avanços ou saliências, se não quiser casar não atrapalha quem quer e está precisando, desocupa a moita!

Assim a noite passou, até cheguei a tirar uma cochilo encostado no barrote onde sentara. Já amanhecendo, a claridade acanhada dos primeiros raios de luz brotava lentamente contornando a escuridão e revelando as formas simples dos objetos que à noite me pareciam assustadores. O capim do campo brilhando pelo orvalho da noite, a paisagem meio enevoada pelo manto branco que descia sobre as árvores da condensação do sereno da noite. Com o aquecimento do sol tudo ia se dissipando e ao mesmo tempo se via a maravilha da vida renascer, todos os seres vivos tomando os seus lugares nos seus ecossistemas, o galo é o primeiro a se anunciar, o canto misturados dos pássaros da alvorada, as borboletas esvoaçantes, as garças levantando vôo para os lagos, os converseiros e acertos dos convivas depois da festa, o cheiro do café forte esfumaçante na caneca de esmalte, a tosse seca de alguns, o cigarrinho de palha colado com cuspe e firmado no canto do beiço, o Chapéu de Palha já não parecia tão grande. Tudo voltando ao normal, fazendo a vida retornar ao seu ritmo naquele local ao seu compasso, toda pressa tinha 24 horas, não existia horário quem mandava era o sol, quem se deu bem, logo todos saberiam, o convite pro casório era batata!

Por lá eles se respeitavam e seguiam padrões de valores humanos já esquecidos na cidade, bom dia, boa noite, sim senhor, sim senhora, abença pai, abença mãe! ...não se tinha conhecimento de brigas, roubos, assaltos ou assassinatos, todos conhecem suas famílias, seus filhos e netos. Lá ninguém tem nome próprio, os homens casados se chamam Raimundinho da Maria, Pedro da Filomena, Ariovaldo da Deuzalinda, os filhos eram assim também, Pedro filho de Maria do Raimundinho, assim por diante.

Às 6:00 h da manhã demos início a longa caminhada de volta já com o sol alto, só então pude ver a distância que percorremos à noite, era assustador saber que tínhamos andando por aquelas bandas, passamos por entre cercas, levantado arames, descendo barrancos, subindo barrancos, passando por paus sobre riachos onde cachorro cotó não passa (dizem que o rabo do cachorro é quem o equilibra), pasto com bois brabos, (e eu, que por um momento pensei em parar!). Mesmo com pressa para iniciar sua lida, Tineri ainda dava umas paradinhas, para cumprimentar seus vizinhos de passagem, o primeiro foi o seu “Ilha” como era conhecido por todos, soube depois que se chamava Wiliam. Em sua passagem, o Tineri não dispensava uma cortesia com os vizinhos, um golinho de cafezinho aqui, outro acolá, com isso me dava tempo para sentar e descansar um pouco e recuperar o folego. Ao chegar em sua casa, Tineri trocou a roupa e caiu na lida diária e eu como tinha perdido o horário do motor mesmo, dormi o resto do dia.

Esta foi a primeira e a última festa que participei para arrumar casamentos no Cambixe, soube que o Tineri se casou na segunda festa que houve dois anos depois, não fui mais fazer entrega, meu pai havia mudado de direção no seu negócio, agora não fazia venda de quadros porta à porta, montou uma lojinha na mesma rua onde morávamos passou a vender quadros e molduras avulsas. Foi o fim das aventuras no Cambixe.

Molar
Enviado por Molar em 18/07/2020
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