Seu Ary Garcia

Era manhã de abril. Subia a pé a rua Santa Maria, sem pressa, a caminho da ETA, observando, ora as encostas, ora o leito do ribeirão Garcia, tentando lê-los, ansiando que me mostrassem, uma frestinha que fosse, do passado dos homens, dos bichos, das árvores e das águas daquela região incrivelmente bela! Há um mês iniciara uma tarefa que, desde o início, revelou-se desafiadora e fascinante, realizar o diagnóstico sanitário da comunidade rural da Nova Rússia, no município de Blumenau. Um lugar com tanta história, que é possível senti-la no ar quando se adentra por suas ruas.

Próximo à entrada do prédio, Sr. Álvaro, gerente da estação, grande entusiasta e apoiador do trabalho que realizávamos, se aproximou e disse, “hoje vamos entrevistar Seu Ary Garcia. Ele vai nos ajudar muito lá em cima”. Cerca de uma hora depois, encontrávamo-nos diante de uma casa antiga de madeira. Na varanda, um senhor com cara muito séria nos observava. Com certa relutância, desceu as escadas e veio em nossa direção. Nos apresentamos. Sr. Álvaro começou a explicar o que fazíamos ali. Sem dizer palavra, fez um gesto para que entrássemos. Assentados frente a frente na varanda, nosso entrevistado, cercado por dois enormes cachorros que não desgrudavam os olhos de nós, fitava-nos com um semblante mais grave ainda.

Aquele era mesmo o Sr. que nos ajudaria? Teríamos chegado em má hora, ou dia? Quem sabe? Meu Deus! Não seria melhor levantarmos, pedir desculpas pelo incomodo, por tomar-lhe o tempo, por ter que ouvir nossa voz…? Enquanto imaginava tudo isso, Sr. Álvaro, como um sagaz cavaleiro, nascido e criado no Reino do Garcia, interveio heroicamente para nos salvar: “Tu sabes que, um dia eu estava numa sessão na câmara dos vereadores e... olha..., a coisa lá estava complicada, não se entendiam, um bate boca danado sobre as condições da manutenção viária do município. Daí, um vereador subiu à tribuna e disse, bem assim: - Caros colegas, problemas como esses são devidos à falta de iniciativa, de coragem e competência! Me lembro bem como era, a época que ainda existiam os feitores de rua, que coordenavam os trabalhadores em campo e que não mediam esforços para manter esta cidade funcionando! Eu aposto que, se o Seu Ary Garcia ainda estivesse na ativa, não estaríamos nesta situação!

Pronto! A luz se fez! E um sorriso, ainda que discreto, surgiu no rosto do nosso anfitrião!

Ps. Em nossa primeira visita, o momento realmente não era apropriado ; sua esposa estava com muitas dores e aguardava quem a levaria ao médico. Seu Ary disse que, se voltássemos outro dia, responderia com mais calma todas as nossas perguntas. Retornei, dessa vez sozinho, na semana seguinte e, por mais de duas horas, ouvi um pouco da história de luta e trabalho daquele homem que, desde então, passei a nutrir grande admiração e respeito. Há poucos meses, Seu Ary nos deixou para laborar nas moradas celestiais. A última vez que conversamos, me disse que havia modificado o local para onde eram encaminhados os efluentes da pia da cozinha, conforme havia lhe orientado. Naquele momento tive certeza que todo trabalho até ali valera a pena!

Esta crônica é dedicada à família do Sr. Ary Garcia, ao Sr. Álvaro Luiz dos Santos, a Eraci Machado, aos meus companheiros da Eta, a toda comunidade da Nova Rússia e aos que lutam por sua preservação.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 20/07/2020
Reeditado em 20/07/2020
Código do texto: T7011500
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