Um domingo sem ter muito o que fazer

Se o tempo me sobra nesse período viral (ou será virótico, ou virulento... sei lá) em que ficamos aprisionados em casa, imagina num domingo, que já é por definição bíblica um dia em que não se deve ter nada para fazer, salvo ir à missa. Impedido de ir a igreja ou a qualquer outro lugar, por medo do Covid, providenciei uma garrafa do uruguaio Garzón Tannat Reserva 2018, um vinho simples com preço justo; um naco de queijo minas, que temperei com azeite, orégano e pimenta do reino; sentei-me ao sol para absorver vitamina “D”; servi-me de uma taça e pus-me a apreciar o ambiente: vaguei o olhar pelo jardim, primeiramente o de antúrios vermelhos, recentemente plantado e cujo desenvolvimento vai de “vento em popa”, o das laterais da escada que leva à varanda contígua à sala está precisando de cuidados, embora a azaleia lá plantada esteja florida e linda; depois voltei-me para o fundo do quintal (aqui em Brasília chamamos de área verde) e notei que um dos abacateiros está totalmente florido e ainda com alguns frutos grandes nos galhos mais altos, fato para mim totalmente estranho, porque nunca havia visto numa fruteira, concomitantemente, flores e frutos prontos; meus pés de cítricos também estão floridos, especialmente o limoeiro, que apesar de mal cuidado não nega fogo. A amoreira está feia, sem folhas, assim também está o caquizeiro, mas não me preocupa, sei que é o tempo seco; depois examinei o pé de sapoti, que apesar da idade (mais ou menos 15 anos) até hoje só produziu um ou dois frutos e continua na mesma; carregado está o pé de jenipapo, mas dele nunca consegui aproveitar nem um: é muito alto e quando cai, maduro, se esborracha no chão. O jenipapo lembra minha infância no Rio de Janeiro, quando os apanhávamos no chão ou com uma lata presa à uma vara de bambu, para minha tia fazer licor, que na verdade era quase um xarope que as mulheres bebiam quando havia visita em casa e, às vezes, até as crianças provavam. Passeei o olhar pelas mangueiras, pitangueiras e jabuticabeiras, estas últimas estão sempre bonitas, irrigadas que são pelo xixi do Kong, meu cachorro, pois ficam na área do canil.

Olhei o relógio: 11:45hs. Hoje não terei que cozinhar. Domingo é meu dia, mas resolveram pedir o almoço numa galeteria, melhor assim.

Voltei a encher a taça de vinho, ao tempo em que escutei o chalrar do casal de araras que mora na palmeira imperial do meu vizinho (confesso que às vezes sinto inveja das palmeiras e das araras) e passou voando por sobre minha casa. O fato me fez lembrar que ainda não havia alimentado os pássaros, o que fiz em seguida, colocando, como sempre faço, uma mistura de alpiste, girassol, quirela e outras sementes numa bandeja pendurada numa árvore próxima do local onde estava, voltando à minha observação. Os pássaros não tardaram a chegar: primeiro vieram os canarinhos e logo os tico-ticos, sanhaços, joão-de-barro e outros não identificados, todos disputando a comida grátis.

Eu ali na apreciação daquela algazarra me lembrei de uma postagem que recebi há pouco pelo Facebook, como sendo o trecho da última entrevista de Carlos Drummond de Andrade in: "O suplemento Idéias", do Jornal do Brasil, de 22 de agosto de 1987, que vale a pena transcrever:

“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime.”

É... realmente, à medida que o tempo passa nossa percepção do que é belo parece que vai se alargando e simplificando, ao ponto de a notarmos no cotidiano da vida.

Obrigado, Drummond, porque, também eu, inspirado por você, pude sublimar essa minha manhã de domingo sem ter muito o que fazer.

Hegler Horta
Enviado por Hegler Horta em 27/07/2020
Reeditado em 17/07/2023
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