Purgatório

O homem de pulsos enfaixados levantou-se de seu caixão e caminhou por entre os presentes em seu próprio funeral. A quantidade de pessoas o espantou. Ele sempre se achou deslocado, desinteressante, invisível. Mas diante da audiência resolveu caminhar.

Aproximou-se do grupo de trabalho, imaginando que esta-riam ali por mera obrigação. Ouviu seus colegas enumerarem suas qualidades profissionais: ético, competente, justo. Chateou-se por nunca tê-las ouvido pessoalmente e resolveu continuar.

Atraído pelas risadas, encontrou-se com o grupo da escola. Sua vontade foi expulsá-los por tudo que o fizeram passar na adolescência. Mas, ao ouvir o motivo das risadas, a raiva cedeu espaço à nostalgia. Foi transportado no tempo e percebeu-se com um sorriso no rosto. Mais leve, decidiu conferir mais um grupo.

Dessa vez, deparou-se com seus vizinhos, contra quem praguejou: “papa-defuntos!”. Nunca trocara mais do que um “bom dia” ou um “boa noite” com cada uma daquelas pessoas. Pensou que estivessem ali por conta de sua família e não por sentirem sua morte. Ele não faria falta a ninguém.

Mas foi exatamente nesse momento que avistou sua família encurralada entre a parede da capela e o caixão e rodeada de pessoas. Ao avistar seus rostos abatidos e suas profundas olheiras, uma tristeza se apossou de seu semblante e lágrimas pesa-das escorreram de seu corpo sem aguentar a culpa que transbordavam.

Ao ver seu filho debruçar-se sobre o caixão compreendeu todo o peso de sua decisão. Havia aliviado seu sofrimento, mas imposto uma dor irrecuperável à sua família. Seu filho crescerá sem a presença do pai e pior, se culpando pelo ocorrido, já que não se preocupara em escrever uma explicativa despedida.

Implorou pela reversão da-quela situação absurda. Deitou-se novamente em seu corpo, esperando despertar desse pesadelo. Ao abrir os olhos, um clarão. Gastara todo o tempo transferindo para outros as expectativas que criara sobre si mesmo.