Memórias

Tenho a impressão de que minha memória para fatos passados – qualquer momento do passado – é bem pior do que a dos outros. Enquanto meu marido se lembra de vários detalhes de viagens, encontros, lugares, etc., dificilmente eu consigo me lembrar. Antes, achava que era normal não me lembrar de fatos da infância, da escola elementar, pelo fato de que ainda era jovem e que a memória de tempos mais antigos melhoraria com a idade. Agora não tenho tanta certeza. Amigos de mesma idade relatam momentos do passado com muita naturalidade e riqueza de detalhes, enquanto que eu mal me lembro dos professores e de meia dúzia de colegas. Por que será? Seria falta de exercício da memória?

Saí de casa e da minha cidade natal ainda com 17 anos e, como nunca mais voltei para ficar, agastei-me de todos que pudessem me remeter ao passado “social”. Tive uma infância que pode ser considerada normal, embora marcada pela perda de meu pai aos 6 anos (ele, aos 60), e sendo eu sua oitava e última filha. Certamente não é usual, hoje em dia, ter sete irmãos de mesmos pais. Mas deve ter sido bem divertido! Tenho algumas memórias, claro, mas gostaria de ter muito mais. Dá pra imaginar uma rotina, num casarão, até os meus oito anos, rodeada de irmãos mais velhos, seus amigos, nossos primos, vivendo numa cidade pequena, sem opções de entretenimento?

Do dia que meu pai faleceu, num estádio de futebol, não me lembro. Mas é nítida a lembrança de minha irmã mais velha me dizendo, no dia seguinte, que nosso pai havia ido para o céu. Alguma lembrança da missa de sétimo dia, mas do meu pai sendo pai, convivendo comigo, não lembro nada. Pode-se alegar um bloqueio emocional, ou apouca idade, mas o fato é que parece injusto privar, quem sofre uma perda como essa, das memórias do tão pouco tempo que pode desfrutar da convivência conjunta. Será que ainda recuperarei essas memórias?

Minha mãe, conforme ficou idosa, mas sempre lúcida, lembrava-se com clareza de pessoas e fatos até da sua infância. Se eu viver muito, espero sinceramente poder recordar momentos com meu pai. Por ora, imagino que ele devia ter muito pouco tempo para dedicar a mim. Devia estar sempre preocupado com o sustento de família tão numerosa, com meus irmãos mais velhos que estavam se casando, se formando, crescendo, brigando, etc. Uma criança mais, em idade pré-escolar, não devia chamar muito sua atenção.

Ou, ao contrário, eu bem que poderia ser seu alento, aquela única que ainda não representava preocupação, quem poderia lhe acarinhar sem pressa e sem interesse. Poderia olhar para mim como sua última oportunidade de brincar com e como uma criança, de gozar da inocência antes que ela se acabasse, se esquecer das coisas sérias que lhe perturbavam a mente. Provavelmente, eu era a quem ele devia olhar, no final do dia, para dar sossego a minha mãe, cansada de tantos outros afazeres, ou simplesmente cansada de tantos filhos. Quem sabe, depois que eu rezasse o terço diário junto com minha mãe, não era dela a responsabilidade de me colocar para dormir numa das cinco camas dispostas lado a lado, no imenso quarto das meninas. Não me lembro de qual cama era a minha, se havia alguma ordem racional naquela disposição, se era por idade, da esquerda para a direita, ou vice-versa, ou se as mais velhas escolhiam primeiro e, consequentemente, a minha era aquela que ninguém quis. Mas não fazia a menor diferença, pois, em algum horário do dia, todas aquelas camas estavam a minha disposição. Eu podia dormir, pular em cima, ou apenas procurar algum segredo escondido.

Mais do que as camas, o que mais me fascinavam naquele quarto eram o guarda-roupa e a penteadeira. A antessala do quarto onde ficavam era bem grande e não me lembro quantas portas havia no guarda-roupa embutido, me parecia enorme, mas duvido que fosse maior do que o de uma única garota de hoje. Para mim, tudo o que havia nele era pura fantasia. Dele eu pegava vestidos, saias e anáguas, cujos tecidos eu adorava, e juntamente com os apetrechos da penteadeira – também enorme na minha memória – me vestia para ir aos bailes imaginários, enquanto minhas irmãs mais velhas bailavam naqueles que eu ainda demoraria a conhecer. Lenços, tiaras, perucas, maquiagem e sapatos de salto alto faziam de mim uma princesa, cuja existência só o espelho do quarto pôde testemunhar.

Fico com as boas memórias do quarto de dormir da minha infância, enquanto espero recuperar as de meu pai.

(12 Janeiro 2015)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 01/08/2020
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