Entre aves e tertúlias

Tenho sido meio ingrato com meus companheiros de tertúlias da livraria Quixote, lá na famosa Savassi, ponto turístico da capital das Alterosas. Há muito tempo longe de Belo Horizonte, ultimamente exilado pela Pandemia, nem virtualmente consigo participar das reuniões. A maioria das vezes por compromissos, as últimas por pura incompetência tecnológica. O resultado disso é não botar a cara nas “lives” do grupo, embora tenha tentado. Pensando nisso, decidi passear pelo livro “Tertúlias Quixotescas” e comentar alguns dos textos dos sete autores mineiros, incluído este que vos escreve. O livro, pronto no começo deste 2020, pelas restrições sanitárias atuais, ainda não foi lançado. Quem sabe em setembro, quem sabe em janeiro... Quem sabe...

Para concretizar essa homenagem, venho me familiarizando com os textos das “Tertúlias”. O gancho para iniciar já encontro na porta de casa: os bem-te-vis e joões-de-barro da minha rua. Será que, como os argonautas terturlianos, adoram lugares e línguas estrangeiras? Será que não atravessam o rio Paraná, tão perto daqui, para confabular em espanhol, guarani ou portunhol de passarinho com seus pares paraguaios?

Pois o livro "Tertúlias Quixotescas" está coalhado de aves de espécie variada. Pululam por suas páginas aves de verdade, mentes voadoras e homens- pássaros, viajantes desse mundo velho sem porteira. Eu mesmo contribuo com meus “Periquitos Australianos”, do tempo em que a Austrália anexou o Brasil; das antenas de tevê do “Canal Bambu”, onde as andorinhas, pombos e até urubus pousavam para assistir os programas da Itacolomi ou da Alterosa; invado o mundo do futebol com o “Passado de Copas do Mundo”, “Didi Folha Seca”, “Marcial, Rei do Maracanã” e “Consumidor de Futebol”, enquanto topo com “Pai na Zona”, “Por Falso e por Canalha”.

Esses meus periquitos – coitadinhos - são facilmente desbancados pelo fabuloso Azulão, do Edmundo Carvalho, logo no começo do livro. Edmundo, de Conceição do Mato Dentro, na “História do Azulão”, nos apresenta um Pavarotti de asas, joia da coroa do Soizé. O que ele quer é engalobar o dono e comprar o bichinho de qualquer maneira.

Edmundo, porém, não se contenta em enaltecer as cordas canoras do Azulão. Mostra, ademais, aonde leva a mentira de um certo Francisco, dono de sua própria história e de sua perdição. Aparece também um tal Chapecó no relato de uma molecagem de recruta e Edmundo transporta delicada carga de penas de galinha para Campinas, em “A História do Gustavo”. Nesse último texto, voltamos a falar de aves, de onde vêm as penas. Nesse caso, não provêm do Vale de Lágrimas da Salve Rainha nem do rosário de penas desfiado naquele famoso fado. Em “A História de Maria”, acompanha-a a um bar, encontram Andrea, tomam alguns chopes e escuta, narrador onisciente, confissões represadas de uma alma feminina.

Do Azulão, da carga de penas e do chope a três do Edmundo, vou conhecer “As Cataratas do Rio Arrudas”, convidado pelo Francisco Bastos, natural de Oliveira, médico de profissão. Nesse texto, Francisco desvela uma Belo Horizonte desconhecida e compartilha ideias para se aproveitar uma beleza natural desconhecida. Em “Nuvens”, navega nas ”espumas passageiras”, como cismava na infância na terra natal. Em seguida, outra surpresa: Francisco revela-se professor de trinados internacionais nas horas vagas, haja vista o texto “O Canto do Sabiá”. Explico: em uma viagem a Manchester, no Reino Unido, seus ouvidos aguçados captam num bosque o canto de um sabiá britânico e, marotamente, o ensina a cantar como um sabiá brasileiro. Mas Francisco não se limita a textos, faz música também. Em uma de suas composições, “Missa Mineira”, diz que Cristo celebraria a missa com pão de queijo e cachaça e diz como é “Envelhecer no Carvalho”. Voa da música para a crônica e da crônica para a poesia, com a desenvoltura de um sabiá ensinado.

Olavo Romano, natural de Morro do Ferro, distrito de Oliveira, esse dispensa comentários: é renomado cronista mineiro, com cerca de vinte livros publicados, um quadro na tevê, o “Prosa Arrumada” dentro do programa “Arrumação”, da TV Minas. Olavo é presidente emérito da Academia Mineira de Letras. Não fala especificamente de aves em seus textos, mas voa pelo interior de Minas, prosa com tropeiros, meninos boiadeiros, ferreiros, entre eles , um especial, o “Guardião da Chama”, um texto primoroso. Toma uma talagada da “branquinha”, aparta vacas e prova das comidas típicas das avós do interior. Daí é que tira da boca do povo a linguagem dos seus livros, os temas dos seus “causos”. Para ele, pássaro curioso, todo momento é propício a um “Dedo de Prosa”. Imagino que nossos passarinhos, galinhos e pintinhos tenham pousado nos seus carros de bois para ouvir as “Vozes da Cidade Submersa”. Cuidadoso ambientalista dos “Líquidos Caminhos”, por certo o senhor Romano não terá machucado nem espantado nenhuma das curiosas aves do nosso livro.

Já Octavio Elísio, nasceu “ouro-pretano em Belo Horizonte”. O esguio pensador transita pelas “Ruas de Ouro Preto”, vias tortas de nomes saborosos: Rua Nova, já velha; Rua das Flores, das Escadinhas, das Cabeças, Direita, do Ouvidor e a “proibida” do Fulano de Tal, num sobe e desce de ladeiras, dia-a-dia dos montanheses. Octavio, mostra Ouro Preto de dentro para fora. Não é, portanto, a Vila Rica dos pacotes turísticos, é a dos quintais e das jabuticabeiras, das ruas colonizadas pelas crianças travessas como as de qualquer lugar do mundo. No seu rincão, “Sob o Céu que nos Encanta”, viajou com o pai, professor de Astronomia, até os sete anos de idade, quando a viagem se interrompeu e virou saudade. Como o Drummond de Itabira, lembra a ambiguidade do ferro e do ouro enriquecedores, mas também causa de mazelas ambientais. Pensando matemáticas, lamentando não ser poeta, expressa-o com poesia. Seus textos vão do técnico ao filosófico, estuda o Quixote via Goethe, Ferreira Gullar, Augusto Frederico Schmidt e Mia Couto, em “O Cavaleiro da Utopia” e singra as águas do “São Francisco: o Rio da Vida”. Acredito não deva ter ensinado passarinho a cantar, igual ao ousado Francisco Bastos, mas vem ensinando muita gente a pensar, pois vê Minas e o Brasil com “O Olhar da Montanha”: seu ponto de vista é de quem participou efetivamente da vida pública desde os anos sessenta.

Com Paulo Miranda, natural do Brumado de Pitangui, eis-nos de novo entre as aves. Ele põe no palco “O Galim Galinzé”, originário de Guernsey, enviuvado precoce e eternamente por não ter achado galinha a sua altura. Em outro texto, vale a pena acompanhar o “Réquiem para Rodriguim”, de bico aleijado, naniquim, asa maior que o corpo. Rodriguim pula cerca e passa a viver confiadamente entre os humanos, ciscando na sala, no quarto e na cozinha. O conterrâneo Miranda introduz no livro uma centena de gente simples, familiares e conhecidos. Com a crônica “Nortibóia”, mostra, de maneira divertida, a influência inglesa nos falares de Onça do Pitangui, na aurora do Século XX. Propicia flashes do mundo diplomático, no qual convive desde os anos 80, como em “Crônica de Cingapura” e “O Gigot de Armindo”. Relembra divertidamente os pequenos dramas da passagem para a vida adulta e da cidade grande em “Forrinhos sem Alforria”, do qual, aliás, fui coparticipante. Em uma crônica, ao invés do costumeiro e precioso humor, põe em cena o emocionante “Passarinhos do Céu”, onde resume a tragédia sem fim das guerras de todo mundo.

Epiphânio Camillo começou mostrar-se ao mundo como sineiro-mor da Capelinha do Bom Jesus em Pitangui. Ali deu suas primeiras bimbalhadas, ainda adolescente, ao mesmo tempo em que o brumadense Paulo Miranda emigrava para a Sétima Vila do Ouro. Terá visto, com certeza, muito passarinho em Pitangui e nas suas andanças infindáveis por este planeta, da Patagônia à Islândia. Com seus olhos atentos de fotógrafo em tempo integral, capta emoções em lugares os mais diversos, como nos cemitérios de Reykjavik e de Paris, inspiradores dos textos “Kirkjugardi” e “Coeur Brisé”. Escreve sobre encontros casuais com homens-pássaros no salão de embarque dos aeroportos ou na penumbra de um teatro, como nos emocionantes encontros/desencontros de “O Perdido Abraço” e “Sem Fantasmas na Ópera”; ou no trânsito de Beijing, onde, não um passarinho, mas um ser alado, “Anjo Mandarim” num corpo de mulher, aparece para resgatá-lo da loucura do trânsito da capital chinesa. Outra a dar-lhe asas à imaginação, foi “Sonja”, garçonete dos sonhos de um restaurante da aprazível Malmö, na Suécia. Epiphânio, em suas costumeiras, antigas e atuais viagens, encontra sempre pano pra manga e retalho pra capanga.

Em resumo, o livro “Tertúlias Quixotescas” é uma obra onde se encontram diversos gêneros e estilos literários, coroando 24 anos do nascimento de uma ideia, renovada sempre com o ingresso de novos participantes. O que nos une é a paixão pelo conhecimento exteriorizado pela Literatura, em primeiro lugar.

Será prato cheio para vários tipos de leitores, desde os que adoram voar ao país da imaginação quanto aos lugares reais mencionados nas diversas narrativas. Tem assunto instigante para ambientalistas e amantes dos dedos de prosa do interior mineiro. Quanto a minha dívida com os tertulianos, espero esteja quitada. De agora em diante, espero estar melhor na fita, quem sabe... Quem sabe...

(Foz do Iguaçu, 08/08/2020)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 08/08/2020
Reeditado em 13/04/2021
Código do texto: T7030197
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