SONHEI COM A CALOI 10

Com quatorze anos e pouco, traquejado nas perambulações norte-sul leste-oeste da metrópole, calejado das inúmeras ocupações pela vida a fora, tatuado por todas as obrigações que sempre tive para cumprir, desde o tempo lá da roça, quando mal me equilibrava sobre as pernas e balbuciava as primeiras palavras, até então o emprego mais recente, seis meses como cobrador na maior empresa de ônibus urbano da região do ABC., passei meus olhos pelo submundo, salvei-me amparado na boa formação familiar e escolar/religiosa, estreei assim no mundo das oficinas.

Fraco fisicamente, magrelo, menos de sessenta quilos, falastrão, confiante nas experiências passadas, extremamente ignorante do meio ao qual me adentrava, fui.

Nada do que eu conhecia equivalia à malandragem das oficinas. Essa malandragem à qual falo, não tem a ver com desonestidade e sim com o modo de convivência entre os trabalhadores desse ramo. A malícia que existia no meio de motoristas e cobradores, etc., não se comparava nem de longe com aquela a que passei a conviver.

Vivi um tempo em que muitas vezes a condução e o lanche do meio dia eram decididos assim: ou um ou outro, e o maior dos sonhos era possuir uma bicicleta. A Caloi 10 marchas, guidão curvado e pneus finos, era uma coisa quase impensável, algo delirante.

-Ô ô ô ô Z Z Z Zé... amã amã amã amanhã vo vo vo você me me me me aju aju aju ajuda lá lá lá lá no no no no me me me meu moo moo moo moocó? Hoje vejo com clareza o desnecessário ardil que o malandro do gaguinho se utilizou para que eu fosse ajuda-lo na construção de sua casinha, que ele chamava de mocó, naquele sábado. Eu teria ido sem nenhum interesse.

Ele me propôs que no sábado bem cedo, fosse até a casa de seu cunhado e que com a Caloi 10 dele, levasse-lhe lá no mocó, meio saco de cimento que estava lá na casa de seu cunhado. Achei a proposta excelente, uma Caloi 10 em minhas mãos?! Nada melhor. Ele não sabia que eu não sabia andar de bicicletas e eu pensei que conseguiria andar logo de cara.

Frustrante, sacrificado, cômico. O percurso foi tudo isso e alguma coisa a mais. Meio saco de cimento na garupa da bicicleta causava um desequilíbrio que ficava praticamente impossível mantê-la em pé. Montar e andar então, não tinha a mínima condição. Foram uns três quilômetros de descidas e subidas. Empurrei e equilibrei a bicicleta à custa de muita força, que parece que eu nem possuía.

Trabalhei aquele sábado inteirinho e nunca contei que não dei nem sequer uma pedalada na bicicleta que era o meu maior sonho. No meio da malandragem, o melhor malandro se cala.

JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 15/08/2020
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