Agosto

“Zé!...”. “Tá na hora...”. Ainda sinto a suave pressão no ombro, como quem faz algo que não quer. A voz em sussurro pra não acordar minha irmã e minha mãe. É meu pai que me chama pra ajudá-lo na lida do leite. Um ofício duro para o homem do campo que ainda não conheceu a ordenhadeira mecânica e nem terá dinheiro pra comprá-la. Sigo o ritual. Ponho meu casaco, calça, botina e chapéu. Adultozinho sigo para o terreiro, não sem antes pegar minha caneca de alumínio de alça com a figura de Nossa Senhora Aparecida pintada em azul; ponho açúcar no fundo para tomar leite espumado, o merecido salário pelo trabalho.

Encosto a porta da cozinha. Mãe já se mexeu na cama e logo se levanta. Tomara que ela faça bolinho frito no café! Desço o degrau da varanda e sigo pelo terreiro. O frio de agosto chega até os ossos. Deu no rádio que em São Paulo geou ontem.

Dessa vez vou fazer duas coisas que nas outras não fiz. Primeiro, viro-me para o terreiro da sala e contemplo os rabiscos alaranjados no céu. Vejo o vulto das palmas floridas que balançam, parecendo querer se livrar do orvalho pesado. A fileira de palmas e a parede da casa formam um corredor; ao fundo o espetáculo do sol começando a de desgarrar dos braços da noite. Gravo essa imagem.

A segunda coisa. Viro-me agora para o terreiro da cozinha. Lá está ela, depois do engenho de cana: a frondosa “Sete-Copas” das folhas largas. Verdes, imponentes. Algumas com rajadinhos de roxo. Em certa época ficam quase todas coloridas. É o tipo de árvore que não precisa florir: é sempre pura beleza. “Sabia que ela dá sete copas de galho?”, disse meu pai quando a plantava. Não verei todas. Entre a terceira e a quarta o sítio já terá outro dono; eu, outros sonhos; a vida, outros rumos. Gravo também essa imagem. Não serei pintor; não dei pra isso. Mas se o fosse, meu primeiro quadro seria assim composto: uma linda árvore Sete-Copas e entre suas folhas os raios do sol nascendo.

Chego ao curral. A Malhada está sendo ordenhada pelo meu pai. Bênção tomada, não há mais que dizer palavra. Me agacho e encho até o limite a caneca. Já dá pra ver a espuma branca! Esse gosto. Vou persegui-lo por toda a vida.

Menti... tem uma terceira coisa que farei nesta sessão, só agora me lembrei. Vou ao pequeno estaleiro que meu pai fez pra colocar a grande lata de leite. Ela tem, como a de todos os vizinhos que vendem leite para a Cooperativa, as iniciais do nome de meu pai: “L.L.F”. Ele mesmo pintou, com tinta amarela. É que percebi que estão escondidas, viradas para o lado de trás. Subo no estaleiro. A lata está pesada, quase cheia. O barulho do leite balançando e batendo na beirada. Um som metálico, distorcido. Consigo girar... Pronto! As letras agora estão visíveis.

Eu desço e fico ali, parado, olhando. Não percebi que ele me observa de longe, disfarçadamente. Feliz, por certo, ao ver que o filho sente um imensurável orgulho do pai que tem. Gravo também a imagem daquela grande lata de leite. E desejo ter no futuro, não riquezas e honrarias, mas sim uma que seja minha, com as iniciais que eu mesmo pintarei: “J.C.F”. A lata, um sol, uma Sete-Copas e um bigode de espuma de leite.

O frio passou. O céu está absurdamente azul. Será um belo dia.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 20/08/2020
Reeditado em 07/05/2021
Código do texto: T7041666
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