CHATO, O NAVEGANTE INVOLUNTÁRIO

CHATO, UM NAVEGANTE INVOLUNTÁRIO

Memórias que trago de uma época mágica de minha vida. O período entre 1956 e 1967 marcou-se por muitas mudanças, foram onze anos que, em minhas recordações, dariam material para inúmeros livros, caso tivesse intenção de registrar o que aconteceu nessa minha transformação de um garoto de dez anos em um jovem casado, iniciando um curso de engenharia na Universidade Federal do Paraná. Tudo começou com a mudança de nossa família para a casa de número 78 da Rua Marques de São Vicente, no centro de São Vicente. Rapidamente fiz amigos e vivi muitas situações curiosas. Situações essas que aconteciam uma atrás da outra, pois a Turma da Pracinha, como nos autodenominávamos,era formada de garotos, rapazes e adultos de todos os tipos e classe social. Foi uma convivência totalmente socializada, em momento algum presenciei discriminação de raça, credo, cultura, etc. De dia, a turma jogava futebol na Praça Bernardino de Campos. À noite a galera se encontrava na Praça João Pessoa, uma quadra distante da primeira, a ali rolava muita conversa sobre todos os assuntos possíveis. Essa convivência ocorria de maneira tão natural como nunca mais vi. Não havia competição entre as pessoas, o que ocorria eram zombarias sem ofensas e poucas discussões. O normal era uma roda de conversas, em que cada dava sua opinião ou contava suas experiências. Formavam-se também pequenos grupos quando o assunto era de interesse específico dos participantes. Essa história aconteceu nos tempos da Pracinha. Entre os indivíduos mais simples que freqüentavam a Pracinha havia um negro que se apelidou de Chato. Até hoje não sei o motivo desse cognome, pois não tinha nada de chato. Era uma pessoa humilde, que vivia de pequenos serviços diversificados, tais como capinar quintais, carregar malas na rodoviária para turistas, engraxar sapatos e outros biscates sem um preço definido, pois Chato aceitava qualquer valor que a pessoa pudesse lhe dar e, se o cliente não tinha dinheiro, seu trabalho ficava de graça. Chato tinha uma alma pura e de uma ingenuidade única, sempre de bom humor, incapaz falar mal de uma pessoa. Vivia o dia a dia, e muitas vezes lhe convidavam para comer. Chato não entrava nas casas, pedia para lhe trazer um prato com comida. Fazia sua refeição e devolvia, agradecido, o prato e os talheres para o amigo. Entre suas especialidades, uma era catar mariscos, Chato sabia os locais nos quais esses frutos do mar estavam mais graúdos e onde não se podia catar porque os mariscos eram novos e pequenos. Era normal encontrar nosso amigo com sacos de mariscos encomendados por um freguês. Enfim, Chato era uma pessoa prestativa, que todos gostavam, e sempre que possível, ajudavam-no.

Uma das senhoras conhecidas de Chato encomendou grande quantidade de mariscos. Chato prometeu entregar o pedido em dois dias. Dia seguinte, ao raiar do dia, Chato pegou o barco de um amigo foi catar os mariscos encomendados, cheio de expectativa, pois iria receber um bom dinheiro pelo trabalho. O barco, se é que pode assim ser chamado, era feito em casa, com tábuas comuns, calafetado com cordas embebidas em asfalto, totalmente inseguro. Uns quinhentos metros da saída da baía de São Vicente há um rochedo pouco aflorante em frente às obras de um edifício abandonado, cujo nome seria Porta do Sol. O mar estava como se fosse um lago, totalmente sem ondulações. Chato pegou o final de maré vazante e, usando um remo tão tosco quanto o barco, navegou até a Porta do Sol. Havia levado dois maços de cigarro e dois litros de cachaça para aquecê-lo nos intervalos dos mergulhos na catação dos mariscos. Devido à maré baixa o rochedo estava todo acima da linha d água, e Chato colocou o barco simplesmente apoiado nas pedras. Como era de costume, abriu um maço de cigarros e um dos litros de cachaça, bebeu uns bons goles de cachaça e, inadvertidamente, deixou cair na água a caixa de fósforos, que foi levada pelas águas de maré enchente. Ainda com sono devido ter acordado cedo, triste com a perda dos fósforos e o efeito do álcool, Chato dormiu dentro do barco por umas horas, tempo suficiente para a maré desprender o barco do rochedo e deixá-lo à deriva. A maré vazante iniciou e levou o barco fora da barra. Dizem que Deus protege os bêbados, e Chato foi beneficiado por um mar calmo que, ajudado pela maré, levou o barco em direção ao alto mar. À tarde, o nosso agora herói, acordou e viu somente duas coisas: céu e mar. Olhou o cigarro apagado e, sem o remo que havia ficado nas pedras, constatou que nada havia a fazer. O melhor seria permanecer a deriva, sem inventar nada a não ser aguardar. Acabou com o primeiro litro de cachaça e voltou a dormir mesmo desesperado por uma caixa de fósforos que lhe permitisse fumar. Em seu profundo sono alcoolizado, sonhou que lhe estendiam uma caixa de fósforos novinha, que pegou com sofreguidão a acendeu um cigarro. Acordou, já de noite, levantou-se do fundo do barco e olhou em volta e, dessa vez, viu um céu com muitas estrelas, o clarão do reflexo da Lua e... Nada mais. Abriu o segundo litro de cachaça, tomou muitos goles, voltou a olhar desesperançado para o cigarro apagado. Era uma noite fria, Chato dormiu todo encolhido aquecido pelo álcool. Voltou a acordar de madrugada e nada havia mudado: infinitas estrelas, o rastro do brilho da Lua no mar saindo do barco. Desta vez bebeu um pouco de cachaça, agora com medo do que poderia acontecer com ele naquela imensidão, parecia ser o único ser humano no Universo. Voltou a dormir. Acordou o sol já ia alto e queimava sua pele. Apesar daquele calor intenso, não havia como acender o cigarro que estava em sua mão ha um dia. Apagado. Acabou com o segundo litro de aguardente e novamente adormeceu. Sonhou com o cigarro, com a cachaça, com os mariscos, com a mulher lhe esperando, com o dinheiro que iria receber. E o cigarro, aceso, soltando aquela fumaça inebriante, tentadora. Sentiu que estava com a raspadeira, tirando os mariscos da rocha, mas não era ele que fazia o movimento. Alguém o cutucava, o sacudia. Abriu lentamente os olhos e, ai sim, sentiu que realmente alguma coisa batera no barco. Olhou para cima e viu duas silhuetas na proa de um barco pesqueiro chamando-o pelo nome. Fixou o olhar e reconheceram os pescadores, funcionários dos Umbuzeiros. Levantou-se, ficou em pé no seu barco minúsculo e perguntou:

-Vocês têm fósforos?

Paulo Miorim

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 21/08/2020
Reeditado em 22/09/2020
Código do texto: T7042749
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