2020- O ANO QUE NÃO EXISTIU

1968 foi um dos anos mais conturbados do século vinte. Quem já era nascido e tinha idade suficiente para ancorar lembranças de experiências significativas em suas vidas, deve lembrar-se muito bem da imensa turbulência que sacudiu o mundo todo naquele ano. A guerra do Vietnã atingia o seu clímax com a entrada dos Estados Unidos no conflito. O envio de milhares de soldados à Ásia, para morrer por uma causa que o povo americano mal sabia do que se tratava provocou uma revolta popular entre os americanos. Na mesma esteira o movimento estudantil de maio de 1968, na França, tornou-se o símbolo de uma época de renovação de uma sociedade que naquele momento, fazia uma violenta revisão nos seus conceitos. A fonte de tudo isso era uma juventude que se recusava a cultivar valores, que na concepção de seus líderes, haviam levado o mundo a duas guerras mundiais e a uma divisão política entre duas concepções de vida – liberalismo e comunismo - que somente dores haviam infringido à humanidade. Nessa conjuntura veio a luta pela liberação sexual, o repúdio à todas as guerras (expressa no slogan tão caro aos hippies “faça amor, não faça a guerra”), os movimentos pela ampliação dos direitos civis, cristalizado na luta de Martin Luther King, e o surgimento dos diversos movimentos mundiais pela preservação do meio ambiente, o combate à fome, liberação do aborto e outros postulados que até hoje provocam urticária em governos conservadores. Mais do que iniciar uma revolução de costumes que se espalharia pelo mundo e se integraria ao pensamento e ao comportamento das novas gerações, o ano de 1968 pode ser visto como desdobramento de uma série de questões propostas pela revisão dos costumes, oriundas das lutas políticas que emergiram a partir do fim da segunda guerra mundial, influenciadas pelas obras de autores como Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Peter Kerouac, e principalmente artistas como Bob Dylan, Beatles, Rolling Stones e outros. No Brasil, as tendências revolucionárias de 1968 também deixaram sua marca nos distúrbios que culminaram na edição, pelo governo militar, do Ato Institucional nº 5, que instituiu, de pleno, a ditadura no país. Essa experiência histórica foi muito bem retratada pelo jornalista Zuenir Ventura em seu livro 1968- O Ano que não terminou. Para Zuenir, 1968 foi um ano que ficaria como marco de um despertar de consciência que nunca se apagaria do imaginário popular, da mesma forma que 1789, ano da eclosão da Revolução Francesa, que se tornou símbolo de todos os movimentos populares que buscam transformações no meio social a partir das suas bases. Mesmo que essas transformações, no fundo, acabem não acontecendo, como lamentava Belchior em sua canção “Como nossos pais”.
Guardadas as devidas diferenças, 2020 pode ser considerado um ano semelhante ao de 1968. Não por causa de movimentos políticos ou ebulições sociais transformadoras, mas sim em razão de uma pandemia que nos forçou a modificar nossos comportamentos e a projetar uma nova visão de mundo. Assim, se 1968 foi o ano que não acabou, porque sempre será lembrado, 2020 pode ser considerado o ano que não existiu, porque será o ano que ninguém vai querer se lembrar. Se pudéssemos riscá-lo do calendário, com muita satisfação o faríamos. Mas como todas as experiências só têm valor se forem efetivamente vividas, podemos, pelo menos, aproveitar as lições que ele nos trouxe. E a principal delas é valor que devemos dar à nossa saúde, ao convívio social e à solidariedade. Á saúde, porque é ela que nos conserva vivos; o convívio social pela falta que ele nos faz e a solidariedade porque ela é o único comportamento que pode, de fato, nos salvar. E como dizia Geraldo Vandré, em 1968, para não dizer que não falei de flores, quem sabe essas lições poderão ser os lírios que nós vamos colher nesse pântano escuro pelo qual estamos atravessando hoje.