O BRASIL DE JÚLIA


A quem poderia interessar minha dor? Perguntava Júlia. Ela era apenas mais uma negrinha como todos as outras, moradora de favela, sem sonhos ou expectativas, afinal, não era boa suficiente e, por mais que acordasse as quatro da manhã para trabalhar, fazendo jornada dupla, o seu esforço era nada, a pobreza acometida era unicamente por sua culpa. Assim bradava o homem de terno na tevê e, de certo modo, a convenceu.

Desde novinha escutava sua mãe dizendo sobre as dificuldades do mundo, onde os brancos dominavam tudo e elas, por serem negras, se contentariam a viver à margem. Seu pai não conheceu. Cresceu no meio de drogas e armas, mas jamais se enveredou por esse caminho. Conseguiu emprego num salão de beleza e tratou de aprender o ofício. Complementava sua renda fazendo faxina nas casas de classe média. E por mais desconfiadas que as patroas ficavam ao deixá-la dentro de casa, ferindo seus sentimentos, Júlia entendia isso como uma espécie de provação, passando por cima e continuava na luta.

Mas hoje, ela chorou. Não conseguia ir além. Seu peito doía ao ponto de não mais senti-lo. Incrível como o ser humano é cruel. Depois de mais um dia de faxina, quando estava prestes a sair da casa de Dona Paula, foi interceptada. Era Carlos, seu patrão. Há algum tempo percebia como ele a olhava. Procurava afastar esses pensamentos, uma vez a necessidade de ficar naquele emprego. Naquele dia, quando ela tocou a maçaneta para destravar a porta , sentiu sua cintura ser enlaçada. Olhou para trás e viu Carlos, já próximo da sua nuca.

Quis protestar, mas ele foi tachativo: - Não tente resistir, ou perderá seu emprego. Mil pensamentos desfilaram na sua mente, como numa tentativa de tirá-la à consciência e evitar os momentos dolorosos que se aproximavam. Tudo foi consumado. Júlia, inerte a tudo, olhava para o teto, e se imaginava em outro lugar, longe de tudo aquilo. Antes de deixar a cena, Carlos lembrou-a: - E de agora em diante, sempre terei com você, pois vocês negros nasceram para satisfazer as pessoas. São subalternos. Vestiu-se, e saiu. Júlia fez o mesmo.

Chegando em casa, banhou-se, e pensou, por um momento, que a água fria pudesse levar a dor da sua alma. Teria o homem da tevê razão? Sentou-se e pôs-se a olhar os talheres envelhecidos sobre o armário. Foi até lá e pegou uma faca. Sentia-se enojada dela mesmo. As marcas das mãos de Carlos estavam gravadas na sua pele. Num golpe certeiro, a faca cortou sua jugular. O sangue espalhou com rapidez e o corpo desfalecido de Júlia jazia sobre o chão. Naquele momento, Júlia estava livre. Poderia lutar por uma vida melhor e ser um pessoa de respeito, tal qual o homem da tevê falava.