Ao entardecer estavam eles à postos para a primeira apresentação de sua orquestra noturna, as sensações foram um pouco estranhas, inusitadas. Fazia tempo que não ouvia esse canto e estava desacostumada com a presença dos grilos, que ignorantes, mal sabiam que estavam a caminho da morte, cada vez que cantavam.
Desde o início da pandemia tornei-me um fósforo numa caixa lacrada. Não que a vida em apartamento seja sinônimo de solidão, mas limita, sem dúvida alguma, o contato com a terra, a natureza, o mundo. Tudo é visto da janela como se fosse num cinema cujas cadeiras da primeira fila, dão uma visão especial do centro urbano, bem diferente nos últimos tempos.
Já no sítio, a vida corre feito moinho velho. Os pássaros eufóricos, imitando o pipa pau do topete vermelho, usam a janela para afiar o bico e promovem uma espécie de batuque despertador de lata. Os patos, gansos e galinhas cacarejam todos ao mesmo tempo, parecem conversar em si. Os cachorros latem e correm como se apostassem uma maratona. E o sol parece mais uma luz pulsante é intensa, vista de qualquer ângulo e sentida no ar quente. O azul do céu no campo é como uma pintura na tela do artista, aliás, é uma pintura do Arquiteto Universal.
Tudo isso, fez lembrar-me  da infância, no quintal da casa da minha avó. No interior de Minas Gerais, o tempo corre diferente. Acordávamos as seis da manhã e íamos brincar de ser feliz, num cenário tão convidativo, do qual só nos despedíamos ao anoitecer.
Tinha lá um pé de jabuticaba plantado pelo meu avô, que não tive oportunidade de conhecer, pois morreu muito jovem. Minha avó dizia que quem planta jabuticaba não colhe. Talvez por isso nunca quis ajudá-la a plantar. Logo depois, descobri que dizia isso por causa do tempo que a árvore levava para desenvolver. Inocência pura, me fez perder a oportunidade de ajudá-la. Coisas de criança.
Naquele pé de jabuticaba, vivi as mais inusitadas quedas, junto aos primos que não eram numerosos. Momentos inesquecíveis bordados em panos brancos por minha vozinha, que se sentava abaixo da árvore e observando as cenas vividas por nós, as eternizava com linhas coloridas e um bastão.
Aquele pé recebeu lágrimas de saudade de minha vó que, pra acalmar o coração que saltitava de saudade do vozinho, chorava escondida atrás do tronco.
Foi também o cenário de uma das histórias que mais marcou minha vida, quando criança. Meu irmão mais velho, ao andar de bicicleta, foi provocado por um primo que ao tentar pegá-lo, sobre a bicicleta, imprimiu, acidentalmente, uma fenda no seu globo ocular com o auxílio de uma espátula. Lembro-me da sensação sofrida na pele: o tremor, a ausência de movimento e o xixi escorrendo pelas pernas. O sangue me paralisou. O choro sufocante e o medo da morte me deixaram em silêncio por muitos dias.
Os personagens de Monteiro Lobato ganharam vida e foram recontadas, de forma original, bem debaixo daquela árvore, as melhores histórias: Emília era minha preferida.  
Não bastassem todos esses momentos, foi lá também que minha tia avó perdeu um dos filhos, preso ao arame farpado, mordido por uma cobra venenosa. Criança não devia morrer. Lembro-me do enterro com caixãozinho branco. 
Aquela jabuticaba docinha colhida vagarosamente pela família, fez de minha vozinha uma excelente produtora de licores, das mais variadas conjugações, que confeccionava para presentear as pessoas, junto à uma geleia com gengibre. Especialmente para gestantes ofertarem às visitas, quando do nascimento do bebê.
Mesmo que não esteja, ainda, no tempo de colheita da jabuticaba, os pés plantados em boa parte do território da área verde do sítio causam uma espécie de euforia nostálgica que tem o poder de transportar todos os sentimentos que melhor infância poderia ter: regada aos frutos que sempre saboreei, mas jamais os devorei com pressa.
Minha vozinha também se foi cedo, apesar do câncer tê-la visitado, foi o coração que deu em nós o último susto. 
No quintal dela, resiste o pé de jabuticaba, inerte. Não há quem o visite. A casa foi abandonada por carregar lembranças. Mas o que o coração sente, a mente imprime... 


À sombra da jabuticabeira, se assentam “vozes” num pedido de perdão. A solidão abraça o tronco que guarda lembranças de crianças ao seu redor, entoando cirandas de roda. Viu risos soltos, galhos quebrados, amores perdidos e corações partidos. À sombra da jabuticabeira, espera ela, que suas histórias nunca morram...”

 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 05/09/2020
Reeditado em 05/09/2020
Código do texto: T7055225
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