As Águas de Diademas

Meus sonhos, qual águas de diademas, me trazendo nas mãos o rito emperrado da velhice envindo, paciente como égua cansada, puxando dois vasilhões de leite, cada um de cada lado.

A rua, na parte da manhã, antigamente, era dos leiteiros. E eram rapazes morenos, a pele dura como couro, cada um no grito próprio, enganchado lá em cima dos cavalos, as calças rasgada e a espora quente no flanco das éguas e atrás o rasto de bosta ficando, que a gente ia apanhar depois do meio-dia, depois de seco, pra enverdecer o canteiro de alface, couve e cariru. E de hortelã.

Às vezes, envinha a gripe e o anúncio era a cabeça pesada, um desânimo quente de catarro no peito, a vontade de mamãe fazer chá de qualquer coisa, mas bom mesmo era sentir suas mãos passeando no rosto, que era ternura, que era ventura, doce como cheiro de erva-cidreira.

Mas assim vão as águas de diademas, brilhantes na minha testa, cacos de vidro esparramando lua na noite escura, mas só eu vendo, ninguém pode entender meus comichões, essa dor violenta, essa vontade de comer o mundo num naco de bolo e saber que a solidão é um elefante de tamanho e que há sempre uma gangorra, eu de lá, ela de cá, ou vice-versa, ela essa coisa e a vida esse desagrado constante, constante, que só o desagrado há de constante.

Águas de Diadema II

Sim, outra vez as águas de diademas, essa contas brilhantes caindo dos terços, essas rodas de água rodando penosas, essa canção morrinhenta de carro de boi de roda grande, esse rito emperrado de velhice envindo.

Ah, sim, e eu que vi os meus amigos amassados, bem triturados, virando farelo de arroz, virando fubá de milho. E eu que vi as amigas escovando as faces, os dentes caindo, a carne do corpo virando muxiba e o rosto das ideias virando velhinhas no espelho das horas...

Não, ao tentar correr atrás do tempo me fizeram um palhaço, o rosto empoado, as calças largonas, as fraldas da camisa pra fora num arremedo de fraque de pinguim branquinho. Não, é inútil se atirar atrás da locomotiva do tempo. Eu devia dizer: aceito o tempo absolutamente. A locomotiva nunca será alcançada, nunca. É esperar paciente na outra volta, sentado â sombra da estaçãozinha, o cinto desapertado, comendo em boa paz uma manga coração de boi.

E ir se assustando com o espetáculo em frente, a correria insana, nesse tempo ruço e seco, na curva da estrada uma árvore chorando... E, enquanto chora, vai esparramando um perfume esquecido.

(Jornal Município de Pitangui, 15/12/1974)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 06/09/2020
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