Monstro

- Por que o céu em São Paulo nunca é azul?

- Você só veio a São Paulo uma única vez! Como pode dizer 'nunca'?

Fiquei pensando como o povo é ingrato. O seu carro, infeliz, é um dos fatores de nosso céu não ser tão azul como o céu da sua ínfima e desimportante cidadezinha escondida perto do Uruguai.

A cidade é como um monstro disforme, mas só quem sabe apreciar a mágica de todos os monstros pode afirmar isso. Não é qualquer um que chega e pode dizer o que pensa sobre São Paulo.

São Paulo é mais que um lugar, ela tem ouvidos e bocas múltiplas, dignas, como disse antes, de um monstro que só se mostra dócil aos merecedores de sua ternura e pluralidade.

Como quem cresce de repente e irregularmente, a cidade se desenvolveu com carência de certos nutrientes e abundância de outros; Ora morre de sede, ora inunda-se a cântaros infinitos. E numa inconstância de tudo, nela, onde brotam mais concretos que plantas - mesmo que toda a construção tenha sido um dia uma planta - a cidade se espreguiça com dificuldade, esbarrando em subúrbios sobre-lotados de exércitos migrantes, dispostos a serem engolidos de uma só vez pelo monstro e sua ânsia apetecedora de trabalho.

Uma vez imersos no estômago dele, os exércitos agem como os substitutos dos nutrientes que lhe faltam, mas nada suprem. Latentemente, eles estarão sempre lá, amontoados em subúrbios, cada vez mais afastados do monstro, mas mesmo assim irão a ele todos os dias. É como um vício: os exércitos migrantes se fazem bons e o monstro também. Os exércitos vão até à boca do estômago e tentam dar alguma sustância. O monstro abre a boca do rosto e estômago. Mas os exércitos, que pensam estar ajudando, não ajudam e fazem surgir muitos excrementos que sujam rios inteiros. É uma pena ilusória. É nada mais que uma ilusão. Quando batem em retirada, os exércitos latentes muito reclamam do monstro da cidade e dormitam na viagem de volta para casa pendurados sub-humanamente em ônibus e trens. Mas eles reclamam e a cidade também reclama deles.

A cidade reclama como um monstro e é de se esperar que a reclamação de monstro mais valha que a de exércitos famintos. Ela reclama e contesta. E ouve o que falam dela. A cidade tem mais ouvidos que boca. Assim torna-se hostil e derruba barracos e inunda marginais, quebra ônibus e faz rodas caírem em gente. A cidade em moldes monstruosos se vinga de quem não a merece.

A cidade sofre as conseqüências por ser incompreendida, por ceder espaço, luz, abrigo, por acolher tantos espíritos e ainda assim ser incompreendida.

Alguém perguntou se ela é bonita? Alguém sugeriu que ela fosse bonita? Ela não quer ser bonita, pois tudo o que é muito belo é fútil e anula-se de outros cuidados. Ela quer ser apenas saudável. Ela não agüenta mais tentar digerir os mesmo exércitos que tanto a maltratam e nem ceder arrotos fiéis a aqueles que dizem dela cuidar. Ela tem filhos infiéis, tantos os naturais como os de criação. São todos filhos mesmo assim, mas nenhum quer cuidar do monstro plural como se fosse um poodle cor-de-rosa, que, provavelmente, você tinha em mente quando disse mal dos céus de minha cidade.

Laís Mussarra
Enviado por Laís Mussarra em 23/10/2007
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