A única pessoa que deve agradecer todos os dias o isolamento social é o meu vizinho de baixo. Gustavo é um psiquiatra de renome, sempre calado e muito solícito. A profissão deu a ele uma “cara de Monalisa”, nunca saberei o que pensa de verdade, queria ser assim, mas a minha ironia vem como estampa de camisa, só que na testa. Mas por que Gustavo estaria feliz? Acabou o trock, trock do salto alto. Não tenho chinelos. Então, é inevitável. Mas durante a pandemia substituí o scarpin por tênis e roupa de ginástica. Não satisfeita com a decadência, comprei um crocs. Isso mesmo! Um trombolho de plástico que fica entre o chinelo e a bota galocha com carinha de pantufa. Era hora de deixar o apartamento, estava isolada demais, tive medo do próximo passo. Comprar uma havaianas? Logo, preferi passar uma temporada no sítio.
O desfile num ambiente rural tem mais expectadores, verdade, mas pra maioria que anda pelado, um pijama deve ser roupa de gala. Galinhas, patos, gansos, passarinhos, esquilos, teiús, formigas, mosquitos, pernilongos, gatos e cachorros, se revezam nos horários do dia para dar ibope pra minha passarela ampliada: 240 metros quadrados de área construída. 
Estava observando as galinhas da janela. Não gosto dos escândalos delas de manhã. Meu avô dizia que ao cacarejar estavam avisando que botaram ovos. Presunçosas elas, não? E mal sabem que esse tal aviso chega ao gambá que mais tarde bem buscar sua “galinha de ouro”.
Mas atraente mesmo é a galinha-d’angola. Elas ficam nervosas facilmente, o que as deixam muito agitadas, chegando ao estresse total de se violentarem. Vivem em grupos até quando vão andar pelo galinheiro. Engraçado que nunca as vi desorganizadas, estão sempre acompanhando uma galinha que mantém a liderança, ficando, inclusive, à distância quando da alimentação das demais, para ver o entorno. Parece que cuidando do espaço. Depois de olhar tudo, ela vai se alimentar. Vejo que não são boas mães, pisoteiam os filhos, nas suas correrias e por vezes, os deixam para trás quando vão se alimentar, como se não fossem da mesma família.
Olhando pras angolas era impossível não fazer alusão à humanidade. A doença do século: Síndrome da galinha-d’angola. A correria para realizar alguma coisa como se fosse o último minuto; o estresse contínuo verbalizado de qualquer modo e em qualquer lugar, sem nenhum senso de respeito e empatia; são especialistas em organizar o exterior, mas não conseguem organizar seus próprios sentimentos, gerando obsessão e compulsão, sem medida; desconfiam de tudo e todos ao seu redor tendo como base as suas atitudes; e a imperícia para tratar da maternidade, muitas vezes reflexo de atitude intempestiva, carregada de pesos e consequências. 
E no fim, ao ser perseguida, sua maior façanha: esconder-se no fundo do ninho que, feito em camadas, usando palha na estrutura, esmaga seus ovos, vindo a ingerí-los. E termina cantando como se nada tivesse acontecido.
Sei não, mas essa tal síndrome da galinha-d’angola já existe, e até no meio político faz sua farra. Vai saber...

 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 19/09/2020
Reeditado em 20/09/2020
Código do texto: T7067186
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