A pílula azul

Era a primeira vez que o vazio fazia algum sentido literal..Delimitava e libertava.

O céu azul de março, a terça-feira limpa, a morte no apartamento deserto.

_ Mãe, meu pai está morto.

A frase encerrava anos , derrubava os muros construídos ao longo do tempo, enterrava também a ela, alguma parte de si, uns poucos sonhos, algumas culpas.

A biblia dele estava ali, entre livros de gramática, literatura, jornais e revistas.Um porta moeda.Algumas contas pagas, o folder da pizzaria.

O cinzeiro cheio, um maço de cigarros, um isqueiro.E uma enorme vontade de chorar, era tudo que restara.

Não havia esperado retirarem o corpo.Não poderia olhar seus olhos que amavam a vida. Amava? Sabia que existem tantas maneiras de amar.Como aquela, que ele lhe dedicava, tao estranha, tao amargurada, tao infeliz.

Agora desfazia o apartamento, apagava a concretude de tudo.A Casa de Davi viria para retirar cada coisa, levaria também os destroços do que ele chamava lar.Restava ela, como uma Medéia, dos novos tempos.

Tantos livros silenciosos e silenciados. As camisas dependuradas, na solidão do armário pareciam se juntar e negarem-se à inutilidade.

O travesseiro marcado, o cheiro dos lençóis, a mudez do relógio.

Entao era isso a vida.O encontro inesperado com o irremediável,

a impotência para voltar atrás.As palavras ditas, e aquelas nao ditas.

A ultima palavra trocada, entre uma xícara de chá e o inexorável.

Agora aquele turbilhão de lembranças, desconexas. A dor dos filhos, diferente da sua. E a perplexidade. Que faria com tudo aquilo que nao restou? mas que doia latejante, como se lhe tivessem tirado um membro, um atmo de respiração?

A mesa ainda posta era testemunha de que a morte era uma visitante

estranha.Não exigia aparatos, nao se incomodava com as aparências.

O sol adentrava a sala, e o vento engravidava a cortina.Na varanda, os antúrios floridos, o gato, alheio a contemplar as horas.

_ Mãe, vamos acabar logo com isso.

Tirava-a do alheamento a voz da filha. Ela era mais forte. Encontrara-o morto na noite de domingo, sentado plácidamente.Agora, ajudava-a a desmanchar sua vida, embalar os anos, doar á casa de caridade.

Abriu a mão, olhou a pílula azul encontrada no quarto. Soube, de repente, o quanto tudo era inutil. E ela era apenas uma mulher. suspensa entre dois atos: o amor e a morte.

Tudo mais, era apenas suposições.

Ana Montenegro
Enviado por Ana Montenegro em 23/10/2007
Código do texto: T706767
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