Caruaru, 11 de setembro de 2020

Caruaru, 11 de setembro de 2020

O incerto clima de setembro desse ano faz com que às 14h o sol esteja como se 17h. Mas queimando. À sombra, uma cadeira de balanço. Duas, aliás. Algumas almofadas pelo chão e ali, conversamos ao final do dia, observando às plantas. Ou, quem sabe, pra despertar, começamos o dia planejando uma aventura. Ainda há a possibilidade de entrar madrugada a dentro, agasalhados, aquecidos pela filosofia e pelo assassinato do senso comum observando o céu noturno, inquieto, palco das nuvens. Numa tarde de sol típico do meio-dia de um sudeste, Helouise, sem conseguir dormir no braço, me ouvindo cantarolar “coisa linda” do Tiago Iorc, me fez apelar: a cadeira de balanço, fonte dos pensamentos mais longínquos, nostálgicos, intelectuais e psicofilosoficantes.

Não fosse os terríveis decibéis provocados por uma provável furadeira fazendo da parede da casa vizinha tal qual tábua de pirulito, Helouise ouviria, de pertinho, deitada no colo com o ouvido no meu peito, os vibrantes da minha voz. Lógico, com o som dos carros passando na rua a frente, os gritos do vizinho que teima em entrar em casa e a esposa não quer, o cachorro da casa ao lado que late pro vento e, aqui perto, aos arredores das nossas cabeças, sobre as paredes do quintal, os rouxinóis e pardais. Nossas 4 gatas distribuídas entre sombra e sol, cada qual em sua estrepolia, às vezes vocalizando, avisando sobre a presença de um pardal em uma planta. Nossas aranhas, quietas, cada qual em sua teia, silenciosamente pacientes, degustando uma brisa suave que corria. Helouise continuava me ouvir falar. No entanto, talvez sentindo a descritiva, relaxada enquanto eu balançava carinhosamente a cadeira de balanço com ela em meu colo.

Distribuída, diria. As pernas roliças, jogadas cada uma sobre uma minha. O tronco, responsável pela mini melancia que mora ali, confortavelmente contorcido enquanto os braços, apertadinhos, acolhiam sobre o rosto a fralda que eu havia colocado na tentativa de diminuir a luz e fazer um carinho nos olhos, proporcionando mais conforto. Mas a questão não é nem essa, é o que conversei com ela

– Não, não vou cantar Coisa Linda agora não. Vou cantar uma música nova – afinal, estava onde? No cerne da cadeira de balanço. – essa música – continuei – é de um cara chamado Belchior. Com certeza ainda vai ser atual na tua vida adulta. Ficou muito famosa cantada por Elis Regina, Se chama Como os nossos pais.

Comecei a cantar. Ela já havia cumprimentado às aranhas pela manhã, ao acordar. Conhecia o silêncio e a paciência, já estava mais tranquila no meu colo. Enquanto cantava, existencialisticamente reflexivo em Belchior, notei que obras como essa, manifestas de tantas formas, entre músicas, crônicas, livros – não lançados e póstumos – precisam ser mencionados, já que o Estado não nos fornece uma educação básica a fim de conscientizar sobre determinados contextos, para que as novas gerações aprendam sobre o passado, viva a ancestralidade em sua transmissão oral e antes que o pensamento fosse concluído, a música já fora.

Helouise, dando indícios de que o sono queria abraçar-lhe, ainda não havia dormido. Não hesitei. Iniciei mais um diálogo enquanto ela procurava uma posição mais confortável – o que não quer dizer “não-contorcida”.

– Em 64, o Brasil sofreu o golpe militar e nessa mesma década, ficando famoso o de 69, a Rede Record produzia festivais de músicas, igual a esses de teatro que eu produzo. Da mesma forma que rola prêmio pra “melhor ator”, “melhor atriz”, “melhor espetáculo” e tal, rolava nas músicas: “melhor música”, “melhor intérprete” e etc. Aí essa, foi composta por Geraldo Vandré sempre presente na minha memória porque a primeira vez que ouvi, foi quando em São Bento do Una, saímos todos, numa tarde, da escola, em direção à praça principal da cidade, fazendo uma caminhada estudantil. Ia um carro de som na frente, tocando a música como fundo da fala de uma secretária de uma das escolas estaduais falando sobre educação, a necessidade, a importância. Na praça, discutia-se Paulo Freire com outras escolas que estavam chegando, também em caminhada. Isso é só pra você ter uma ideia de onde saí. Se chama Pra dizer que não falei das flores. Foi um hino durante o período de ditadura militar e ainda hoje instiga ao patriotismo, à militância, ao mínimo de conhecimento sobre a história do nosso país. Vou cantar pra ti.

A essa altura, Helouise já estava pra lá de Bagdá: na boca, a chupeta que não fazia questão de ficar dentro, cedendo espaço pra aquele muco frio e gostoso sinal de sono profundo. Cantei mesmo assim. Mesmo sabendo que ela não ouviria consciente. Mesmo sabendo que ela não entendeu à altura da cognição. Mas cantei mesmo assim. Mesmo sabendo que só as 4 gatas, que compartilhavam da brisa que ouvia um poeta existencialista sentado em sua cadeira de balanço – desafinado – encorajar a elas e a quem ouvisse o vento: Vem! Vamos embora, que esperar não é fazer. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

No fim, entendi que diálogos necessários como esse, seja para transmissão de conhecimento de forma oral, para palestra na USP ou discussão na ONU, precisam acontecer. Seja para colocar minha filha de um ano pra dormir. Às vezes, diria, sem plateia. Apenas pra si, no banho. Ou, enquanto vai ao trabalho, cedinho, antes das 06h. O discurso, a afirmação do conhecimento, a memória dos acontecimentos de forma lógica e cronológica são necessário pra que nós mesmos não esqueçamos. Minha filha corre o risco de esquecer, afinal só tem um ano. Eu, no entanto, se não souber contar hoje, com certeza, aos 15 dela – quando enfim estiver correndo o risco de não esquecer – não ouvirá da minha boca e a história não será contada como conto. Enquanto isso, pra não esquecer, converso com ela desde já, longe da preocupação de ser precoce no diálogo. Afinal de contas, tentei colocar ela pra dormir no meu colo, sob o vento do ventilador, no escurinho do seu quarto. Ela que quis ir pra cadeira de balanço.

MottaLucas
Enviado por MottaLucas em 01/10/2020
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