Ser caçula

O filho caçula, tal como o filho único, carrega vários estigmas pela vida. Para os outros, ele terá sido mimado, superprotegido, invejado, privilegiado. Pode ser que durante um tempo de sua vida tudo isso seja verdade, se não total, ao menos parcialmente. O que se ignora, no entanto, é que também há ônus na vida de um caçula. Em certa altura, o preço é bastante alto.

Ao contrário do filho único, para ser caçula, deve haver ao menos um irmão. E não há carinho demais que compense a idade do irmão mais velho: parece que ela nunca é alcançada. Se houver vários irmãos, a atenção no caçula pode ser um fardo maior do que o prazer. Muitas opiniões, muitos conselhos, muita má vontade. O caçula sofre pelo autoritarismo reverso que lhe é imposto pelos irmãos. Aquilo que não podem evitar dos pais, compensam no irmão indefeso – evidentemente às escondidas dos pais.

E se nada disso for verdade, a sociedade há de atribuir àquela criatura o estereótipo convencional. Você é o caçula? Ah, então você não tem do que reclamar. Certamente todos seus irmãos sofreram muito, mas você, não. Foi muito paparicado, isso sim!

Pobre irmão caçula, não viu crescer ninguém; só obedeceu, nunca mandou; herdou pais com menos paciência, talvez menos recursos; herdou muitos brinquedos quebrados e roupas usadas. E já nasce com ao menos um exemplo a seguir, ou um contraexemplo a não seguir. Faça como seu irmão; não faça como seu irmão; veja o que aconteceu com seu irmão; aprenda com seu irmão, etc. Fica difícil formar uma personalidade própria sendo caçula.

Quando a caçula for a última de várias irmãs, o cenário é peculiar. Ela pode ser a bonequinha das irmãs por muito tempo. É com ela que brincam de mamãe e bebê, e nessas horas a caçula vai confundir os papeis de mãe e irmãs. Com muitas irmãs, é mais provável que não eleja uma única preferida, mas vai invejar cada uma delas em diferentes momentos de sua vida. Serão seus modelos para sempre. Com elas aprenderá a ser moça, namorada, esposa, mãe e até avó.

Pode ocorrer que o caçula inveje o maior tempo que os irmãos conviveram com os pais. Pode ser também que, sendo de outra geração, afaste-se para longe dos irmãos. Mas o reencontro sempre terá aqueles olhares que disfarçam pensamentos como Que incrível, outro dia ele era uma criança; Nossa, como o tempo voa; Quantas vezes te carreguei no colo....

Caberá eventualmente ao caçula, no entanto, ver envelhecer e morrer seus irmãos. E a cada despedida o caçula se perguntará: quantos mais até minha vez? E quem estará aqui para me velar?

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 01/10/2020
Reeditado em 06/10/2020
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