Antes da Pandemia

Um dos efeitos da longa quarentena é lembrar com nostalgia a rotina pré-pandemia. Mas esse mesmo tempo engana sua memória. Se não, vejamos.

Quantas vezes teve oportunidade de visitar um amigo e não foi?

Quantas preguiças teve para se arrumar para ir a um cinema ou restaurante?

Quantas vezes deixou de atender o telefone para não ser incomodado?

Quantas dores-de-cabeça alegou para faltar a um compromisso?

Quantas desculpas inventou para não fazer exercício físico?

Quantos convites recusou para ficar em casa sozinho e em paz?

Quantas receitas pesquisou sem ter tempo para cozinhá-las?

Quantos planos fez para quando tivesse mais tempo disponível?

E agora, que ninguém o incomoda e não tem lugar para ir, reclama e diz que estaria fazendo tudo isso, não fosse a pandemia.

É interessante ver como os valores mudam quando se perdem algumas capacidades. É possível que ao fim desse período você tente fazer tudo o que foi impedido de fazer, mas será que teria feito o mesmo, caso pudesse? Nem tudo. Talvez, nada.

Assiste incontáveis filmes nesse período. Tanto que está perdendo a capacidade de julgamento; já aguenta qualquer filme ruim, só para passar o tempo. Qualquer coisa serve para evitar os noticiários. É provável que não sobre filme para ser visto no cinema depois que tudo passar. Também é provável que virá um tsunami de filmes sobre a pandemia. Ninguém merece!

A tecnologia também serve para acessar amigos próximos e distantes, sem sair de casa. Mas será que está fazendo isso com tanta frequência? Ou será que está aproveitando esse tempo e essa desculpa para ficar à sombra, para não interagir? E por que? Vale refletir.

Um dos motivos deve ser falta de assunto. Não são todos os amigos com quem você quer falar sobre a monotonia desses dias, sobre a melancolia da falta de planos, da incerteza, da mesmice. Quem quer ouvir sobre esses problemas, dado que são compartilhados? Que mensagens de otimismo vai ouvir se não aquelas que já conhece todas? É melhor não incomodar mais ninguém sobre isso, não é?

Agora, se quiser otimismo, basta ir às redes sociais e verá como estão felizes seus amigos e todo o resto do mundo. E se quiser se enganar, acredite naquilo tudo, isso vale tanto quanto os filmes que assiste.

E assim você vai vivendo tal como vivia antes, ou melhor, fazendo escolhas que muitas vezes evitam aquilo que reclama estar impedido de fazer. O fato é que o que mudou realmente não foram as escolhas que pode ou não fazer, mas, sim, o fato de não poder fazer escolhas, não ter a liberdade de fazê-las.

A bem da verdade, para muita gente isso não aconteceu. Só viu sua liberdade cerceada, você, que acreditou que deveria proteger a si e aos outros evitando contato pessoal. É a você que me refiro. Para você, a questão não é deixar de ver fulano ou beltrano, mas não ter a liberdade de escolher vê-lo ou evitá-lo. Essa sensação, ainda que imposta apenas pelo bom-senso, incomoda e só vai desaparecer quando não houver mais perigo. É uma sensação que se manifestou na pandemia, mas não lhe é exclusiva; pode aparecer em outras situações. Bom-senso, apesar de gratuito e abundante, parece inacessível a muitos, infelizmente.

(4 outubro 2020)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 04/10/2020
Reeditado em 09/10/2020
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