Relicário do adeus

Enterrei mais um corpo no meu quintal.

Já se encontrava em estado de decomposição quando cavei com mãos e suor uma nova cova nos fundos da casa.

Hipotermia foi a causa mortis: preferiu o frio. Sim, preferiu. Nem sempre a morte é sinonímia da fatalidade, há pessoas que escolhem um eufemismo acentuado para a covardia.

Uma partida rápida e sem remorso: distanciou-se conscientemente do calor, e no ímpeto dele, assumi a árdua missão de cuidar do corpo.

Enterrei-o no quintal, mas antes tive o cuidado de enrolar os restos mortais em limpos lençóis. Cavei o máximo possível, coisa que me custou umas 3 semanas, porque sempre que tentava, sentia dores nas mãos, nas costas e no peito.

Ele não foi o primeiro a fazer de jazigo a minha residência outrora tão cheia de vida – e eu sabia que também não seria o último – por isso precisava poupar o pouco de energia que me restara até ali.

Por fim, enterrei aquele corpo no meu quintal acidentado em tantos relatos e relevos.

Mais um corpo na ciranda subterrânea do meu quintal, cada um com o destino que procurou.

Há noites em que ouço as vozes misturadas, abafadas, confusas, constantes. Poderia ainda ter voz, no covil do descanso eterno, aquele que escolheu o silêncio?

Nessas noites barulhentas, curo a insanidade com uma taça de vinho. Só as gotas de álcool conseguem se equilibrar às gotas que cabem em um olho e pesam uma tonelada.

Trajados, guardados, memorados e piedosamente esquecidos. Segue a madrugada e todos eles descansam - Exceto a minha inquietude.

Da ponte pra cá, sigo o ritual de limpeza do quarto em que o último hóspede se alojou, mudando os lençóis da cama, abrindo as janelas da sala e trocando o último vinil da velha vitrola.

E o paradoxo dessa reorganização consiste na angústia que transpassa o peito: escrevo aqui para ainda não morrer. Não morrer asfixiada com as palavras. Não morrer pela ausência delas. Não morrer.

Que descansem, apenas. E que deixem a paz para quem ainda tem a chance de vivê-la.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 08/10/2020
Reeditado em 09/10/2020
Código do texto: T7083076
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