A RUA DO POETA

Ainda imerso em profunda dor pela dupla perda - do Edyr e do Pepê -, o Clube do Camelo decidiu fazer um show, homenageando os companheiros. Começaram os ensaios e a escolha das músicas e intérpretes.

Recém-ingressado no clube, o professor Constantino Otero, depois autodenominado Tino Otero, "O cantante do Rio Doce" - transmutado pela irreverência dos Camelos em "O cantante do Riacho Doce" -, fez questão de participar da homenagem. Rio Doce era o curso d'água de onde o Tino era originário e Riacho Doce uma invasão, às margens do Igarapé Tucunduba, na Universidade Federal do Pará, onde o tenor era professor.

Acontece que o estilo erudito do cantante, aparentemente, não casava bem com as músicas originalmente chegadas ao popular do Edyr.

Escolha vai, escolha vem, alguém, parece até que fui eu, que também propusera a fazer do Constantino mais um Camelo, sugeriu que lhe coubesse uma música lindíssima do Edyr Proença: "A rua do poeta ",já gravada anteriormente com maestria pelo filho do homenageado, Edgar Augusto - com letra de seu irmão Edyr Augusto -da forma composta pelo pai, bem no estilo suave da música popular. Edyr fez a canção na oportunidade da morte do grande poeta Vinicius de Moraes, quando deram seu nome a uma rua do Rio de Janeiro.

Dizia o Edyr:

"Ao ver as comemorações pela televisão, perguntei ao Edyr Augusto como ele achava que seria a rua do poeta. Que aparência e sentimentos ocultava. Ele veio com a letra e eu fiz a música e saiu isso aí ..."

A RUA DO POETA

(Edyr Proença e Edyr Augusto Proença)

Na rua do poeta passam versos

Passeiam rimas à luz de estrelas, a brilhar

A rua do poeta é pequenina

E em cada esquina

Há um coração a suspirar

A rua é perfumada pelas flores

Flores das dores dos seus amores

Este violão tocando em festa

Saudades dá, ah que vontade de estar lá

Na rua do poeta o sol respira fundo

No seu lento espreguiçar

Na rua, anjos mostram um outro mundo

Onde é tão fácil de sonhar

Na rua do poeta há namorados

Juras jurando amor, amor - até morrer

Na poesia, a noite é dia

Para o poeta que eu queria ser

Desde os ensaios se viu que a interpretação forte e no estilo pavarotesco do novo cantor era no mínimo diferente. Alguns adoraram e outros, como o Eduardo, começaram a torcer o nariz.

Tino Otero foi aplaudidíssimo no show, mas o nosso poeta Edu ainda não engolia a coisa. Ficava pelos cantos reclamando da interpretação, falando e comparando com a outra existente. Nunca se soube ao certo o porquê da insatisfação mas a verdade é que existia.

Como o caso já estava incomodando e carecia se fazer novas composições ao estilo do novo Camelo tenor, para que fossem apresentadas no futuro, um dia, na presença do Eduardo anunciei:

- Fiz uma música em homenagem ao Edyr, especial­ mente para o Constantino cantar. Chama-se "A rua sem o poeta".

A analogia com a letra da rua do poeta era clara e a alusão à falta que nos fazia o Edyr, mais clara ainda:

A RUA SEM O POETA

(Almir Morisson)

Um dia tu te foste desta rua

Não tenho mais vontade de estar lá

E mesmo que não gostem do meu canto

Eu canto só pra te homenagear

Poeta, poeta...

Eu canto só pra te homenagear

Os versos que passavam nesta rua

Se foram ao faltar o teu olhar

Os anjos já não mostram outro mundo

Pois é bem mais difícil de sonhar

O dia ficou noite e a madrugada

Perdeu suas estrelas a brilhar

Se foram os casais de namorados

E o violão calou pra não chorar

A rua do poeta ficou nua

Sem ter nenhuma flor pra perfumar

E mesmo que não gostem do meu canto

Eu canto só pra te homenagear

Poeta,poeta...

Eu canto só pra te homenagear

05/02/2000

Só de ouvir o nome da música o Eduardo já ficou desconfiado. Quando a ouviu por inteiro, no trecho em que falava "... E mesmo que não gostem do meu canto, eu canto só pra te homenagear ..." não aguentou e falou no meu ouvido:

"Tu tá puxando o saco. Espera que vai vir o troco!"

E ficou remoendo até que dois dias depois chamou o Gervásio pedindo que musicasse uma letra dele alusiva ao fato. Não passou na censura do Gerva e de alguns poucos que a leram, de maneira que a canção ficou na intenção.

O Tino Otero talvez tenha desconfiado, mas nunca soube do fato até este momento. Todavia, depois que no meu último show foi ovacionado ao cantar a canção, quase quebrando o microfone em pleno palco do teatro, de tanta força que deu à interpretação, parece que o Edu caiu em si, deu o dito pelo não dito, deixou tudo mais barato e desistiu do troco. Foi tiro certo na pinima.

Acho até que hoje ele já gosta e aplaude.

Quando fizemos trinta anos de existência, em 2019, cantei “A rua do poeta” no show comemorativo.

Vejam se, de fato, a música do Edyr não é linda.

https://www.youtube.com/watch?v=66GFWQ8BW_M

Em algum de nossos próximos shows ainda vou convidar o professor de canto Milton Monte, tenor e cantor de ópera para interpretar “A rua sem o poeta”.

Com certeza o Eduardo também vai aplaudir.