Eis aí mais um...

Eu dormia feito um Deus grego e no sonho eu acordei, imediatamente lembrei-me que ainda de manhã minha mãe pediu que eu confirmasse na receita do médico se um determinado remédio, ela havia dito o nome, era o que deveria tomar já no dia seguinte, início da semana. Era madrugada, não demoraria pra raiar o dia e eu sequer sabia em qual horário ela deveria começar o tratamento, por isso levantei da cama e fui escarafunchar as gavetas onde a coroa costuma guardar medicamentos e receitas. Se fosse só isso, vá lá, mas havia tantas outras coisas misturadas que causava desgosto cumprir tão simples tarefa. Como sou um sujeito organizado, aproveitei para fazer uma limpeza geral, e enquanto não encontrava a tal receita, descartei muita coisa inútil, por exemplo: fotos antigas, ponta de lápis, talher de plástico para festa, saquinhos de papel de presente, saquinhos de plástico, bolinhas de encher, frascos vazios; separei receitas de culinária, vários papéis com número de telefone; juntei numa caixa material de costura... Era muita miudeza reunida! O chão já estava encoberto quando ouvi um grupo de pessoas falando alto, várias ao mesmo tempo, à medida que desciam a rua. Apurei os ouvidos e não consegui entender o teor da conversa, parecia que estavam brigando diante da minha residência. Larguei de mão o que estava fazendo, e feito um raio cruzei da copa, nos fundos, até a porta da sala na frente da casa; nesse pequeno trajeto passei a ouvir, misturado a falação já menos tumultuada, quase quieta, um som de serrote. O pensamento foi imediato: - Estarão serrando o meu portão!? perguntei de mim para comigo mesmo. É estranho ter que acreditar.

Devo acrescentar aqui um detalhe: no sonho, a frente do local onde moro era muito antiga, do meu tempo de criança. Naquela época o muro era de meia altura e o portão que o acompanhava era de cedrinho, com a maior parte, a inferior, numa sequência de ripas na vertical fechando um quadrado grande; na parte superior, bem mais estreita, uma sequência de ripas cruzadas em X. Atualmente o muro é alto e o portão tem outra configuração, na sua armação de ipê ele impede completamente a visão da rua.

Em hora tão avançada madrugada adentro eu achei se tratar de gente mal intencionada, de bandidos mesmo, e diante da porta trancada, a taquicardia ameaçou travar meus movimentos, porque a gente não sabe com quem vai lidar ao abrir a porta, se tem homem armado ou não... Esses pensamentos negativos dificultaram a minha capacidade de agir, mas não me impediram de girar a chave na fechadura; liberei o caminho e invadi a escuridão com determinação. Era um breu terrível e não se enxergava absolutamente nada, o barulho do serrote cessou imediatamente. Logo à frente, oriundo da minha calçada ou muito próximo dela, apenas algumas vozes continuaram dizendo coisas obscuras, incompreensíveis. Gritei: - Quem está aí? Quem quer que fossem eles que estivessem ali, do lado de fora, me viam sem dificuldade, eu é que não os enxergava. Com a chave eu tentava abrir meu portão, do qual um deles há pouco serrava uma ripa do cedrinho, e enquanto lutava com a fechadura, continuei fazendo perguntas: - Quem está aí, quem são vocês? Passei o braço por cima da armação de madeira e segurei pela camisa um rapaz do lado de fora com as costas voltada para o muro. Nessa hora, alguém acertou meu ombro com um pedaço de pau. Fiquei furioso e teimei com a chave, consegui desbloquear o acesso e saí de peito aberto disposto a encarar qualquer um. Já na rua constatei que as luzes dos postes clareavam tudo ao redor, então foi possível ver, com surpresa, que eram jovens maltrapilhos e necessitados correndo disparatados para várias direções; dois ou três se justificaram: - A gente corta essas madeiras e recolhe objetos nas ruas para vender e comprar o que comer, nós somos muito pobres, nós não temos casa para morar... E foram sumindo rua afora, dobrando nos cruzamentos até desaparecerem completamente das vistas. Pensei: "Não tem jeito, uma minoria se apropria do erário publico através de salários infames, penduricalhos vultosos, aposentadoria com direito à integralidade bem como à paridade, ajuda de custo de toda ordem, dinheiro pra fundo eleitoral, isenção de imposto de renda pra ministro do STF, corrupção, peculato... Tem que haver mesmo muita gente passando fome..." Nem terminei o raciocínio, despertei de vez.

Eis aí mais um de meus sonhos, daqueles que reúnem na nossa mente imagens, ideias e pensamentos que aparecem no decorrer do nosso sono.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 12/10/2020
Reeditado em 12/02/2024
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