Fujona

Lembrei-me de... o que era mesmo? Ora, eu tinha uma coisa para contar, uma ideia que me ocorreu “agorinha” mesmo! Puxa vida! Ah, lembrei. Estava no estacionamento do supermercado... espere... não foi enquanto colocava as compras no porta-malas? Não, foi quando estava na fila do caixa, é isso. Veio-me uma ideia, brilhou como um facho de luz e eu pensei: “Vou escrever uma crônica sobre isso.” Mas... agora não consigo lembrar. Que pena! Parecia promissora e estava tão clara na minha mente... Ah, não seria sobre uma bengala?? É, acho que era isso, cheguei a imaginar um começo mais ou menos assim: “No limiar da faixa de pedestres enxerguei uma bengala hesitante e...” Não, não, não era isso. Ah, achei. Acho que era outro assunto, mas não tenho certeza. Era mais ou menos assim: “No fim daquela tarde, ao por do sol, ela chegou de mansinho...” Não, também não era isso!

Como são frágeis são as ideias, chegam sorrateiras, acenam sutilmente e basta você olhar para o lado oposto, “ploft”, desmancham-se como bolha de sabão. Então para tentar reencontrá-la fazemos até ritual na tentativa de pescá-las de volta: olhamos para cima, fechamos os olhos, andamos em círculos, tentamos refazer o trajeto de nossos movimentos recentes, como se tentássemos retornar um filme a uma cena que não conseguimos ver direito. Tudo isso na esperança de estimularmos a memória e, de algum modo, recapturar a ideia fujona.

Naquele dia, porém, todos esses expedientes mostraram-se inúteis. Tentei insistentemente recapturar a brisa suave que sussurrou tão insinuante no meu ouvido, mas foi em vão. Fiquei ali abraçado com a frustração, decepcionado com esses caprichos da memória.

A ideia, infelizmente, não mais se deixou apanhar cumprindo aquilo Autran Dourado escreveu numa de suas obras para aspirantes a escritor: “uma história que se perde não se acha mais”. Para mim foi a merecida sentença – por não carregar sempre caneta e papel - para punir minha imprudência e descuido no relacionamento com algo tão fugidio como são as ideias ou histórias que se insinuam na mente de quem gosta de escrever. Tais situações podem ocasionar perdas irrecuperáveis para um escritor ou aspirante a tal. E assim, nunca saberemos que mistérios tais ideias fugitivas revelariam se transformadas em uma crônica, num conto ou, até mesmo, num romance.