[ anticrônica #3 ]

a um cão

que faz um cão — a nós, desconhecidos — aproximar-se de nós — desconhecidos — numa rua defronte de um vasto terreno que era matagal, e que agora, é terra, e mais ao longe, os prédios de sempre?

um cão buscando algum afago, alguma atenção — não saberei do seu dono nem da sua dona; caso o tenha; caso o tivesse.

um cão que, timidamente, tenta uma aproximação enquanto esperávamos — minha Mãe e eu — que abrissem o portão, e posteriormente, entrássemos.

um cão estrangeiro; e estrangeiros ao cão; o medo da possível mordida, o medo da possível ferocidade;

mas era dócil, ao menos, me parecia, quando olhei — inda que breve — em seus olhos.

por vezes esqueço-me que um animal não nasce agressivo, o tornam agressivo.

assim como a um filho. assim como ao filho desse filho.

numa rua, que fazia aquele cão?

numa rua, buscava aquele cão algum conforto nos braços do homem?

numa rua, um cão é chamado de cão — inda que aquele cão, acho, estivesse de coleira e bem cuidado.

estaria, aquele cão, perdido? abandonado? como muitos outros tantos que estão perdidos ou abandonados? quando não fogem por conta dos maus tratos?

mas aquele cão, não me parecia agredido, mas perdido, mas inocentemente perdido, mas inocentemente, quiçá, entre curioso e assustado;

porque éramos altos, se comparados? ou era a estranheza presente?

um cão guarda e guardará o cheiro de outro cão, assim como uma pessoa guarda e guardará o cheiro de outra pessoa;

mas se invertidos, e misturados, o cão e a pessoa, pode ser que apenas um, guarde e guardará o cheiro de outro; mas não o oposto.

mas não o oposto?

como, de tanto cuidar de um animal, não guardarmos — e sequer conhecemos — o seu cheiro?

não o cheiro pós banho dado em casa ou pago em estabelecimento, mas o cheiro que pertence a cada um desde o seu nascimento; e que vai mudando, conforme passa, o tempo.

um cheiro humano, que poderíamos conhecer como: "nome".

um cheiro animal, que não sabemos; pois damos nomes aos cães sem perguntar, sem saber, que nomes têm; ou que nomes tinham.

quantos nomes um cão carrega ao longo da vida?

quantos cheiros um cão carrega ao longo da vida?

quantos cheiros um homem carrega na vida?

o suficiente para perder o olfato com relação ao cão? e por isso passamos e compramos e ganhamos e nos damos perfumes?

para omitir um cheiro? para esquecer um cheiro?

ou para jamais dizer que esquecemos?

sequer sei o nome daquele cão;

[ daquele Canis lupus familiaris.

e sequer o darei um;

para não interferir em sua liberdade.

*

sequer sei o cheiro que tem; e no entanto, pode ser que o mesmo nos guarde — minha Mãe e eu — com gentileza e ternura, com a isenção da violência, enquanto nos afastamos

— ele, descendo a rua;

e nós, passando pelo portão.

porque se abrira;

[ e era preciso

que — minha Mãe e eu —

entrássemos.