Dinheiro suado

Já se foi o tempo em que o aluno que mais se sobressaía numa classe era consequentemente o mais inteligente, o de maior rendimento no aprendizado, o que tirava as melhores notas. Era comum que esse fosse o escolhido para representante da turma, pois possuía um boletim exemplar, seu comportamento e educação seguiam o mesmo nível. Então, por lógica e mérito, era sempre o indicado para ser a voz da turma e também ajudar a resolver os problemas de indisciplina.

Na escola de hoje, a escolha do representante atende a outros critérios. O menino ou menina deve ser popular, impor respeito, deve ser um tanto subversivo e ter uma postura que jamais se aproxime da submissão às regras de disciplina do colégio. Notas altas e bom comportamento não são quesitos na seleção atual, em que os candidatos são bem mais numerosos do que se fossem adotadas as exigências antigas. A eleição é democraticamente feita pelo voto de cada estudante da classe, sem a interferência ou indicação de qualquer professor. Um verdadeiro perigo!

Não foram necessários muitos encontros para perceber que William seria um dos líderes daquela turma, porque há sempre figuras expressivas que conquistam espaço desde cedo quase involuntariamente. Mesmo a pedido da galera, dispensou a candidatura, porque no fundo sabia que não estaria sempre presente, tinha outros negócios para cuidar. Mas não teve jeito, elegeram ele.

Era baixinho e raquítico para um menino de treze anos, dono de uma pele uniformemente tonalizada de um negro lustroso, vivo, como se não saísse de casa sem se embalsamar com algum creme hidratante – coisa que certamente não fazia. Seu sorriso era incrivelmente branco e contagiante. Astuto, gente boa, comunicativo demais, talvez para expandir suas transações, sinceramente até hoje não sei. Trocava de lugar umas duas ou três vezes em cinquenta minutos de aula. Apesar das minhas broncas, mostrava apreço por mim. Pude comprovar o fato num dia em que, ao estacionar o carro próximo à escola, ele se aproxima e me alerta de que eu deveria deixar o veículo em casa por uns dias, pois o assalto estava liberado no asfalto pelo chefe do morro. Foi com esse rápido aviso que tomei consciência de uma assustadora equação: tráfico de drogas interrompido por ocupação da polícia é igual à permissão para a prática de furtos e assaltos na região.

Era faltoso, demonstrava sua pouca afinidade com os estudos até mesmo para achar a página solicitada do livro, que ele nunca trazia mas sempre pegava emprestado com um colega de outra turma momentos antes do início das tarefas, porém só das que valiam nota. Por falar em notas, assim também são chamadas as cédulas de dinheiro por aqui. William me mostrou que entendia disso muito bem. Pediu-me um elártico como quem pede uma pilha ao padre no meio da missa. Com certeza, não estava nem aí para o meu sermão do dia. Apenas aproveitei o momento para corrigi-lo sutilmente: “– Não tenho e-lás-ti-co, William, preste atenção na aula!”. Pediu ao colega do lado, a outro, à sala inteira. Pediu permissão para ir até a secretaria atrás do elástico. Ao ser questionado sobre a necessidade tão urgente do objeto em plena aula de Português, ele abre a mochila cheia de notas de diversos valores amassadas e me diz que seria para “arrumá elas”. Boquiaberta, eu pergunto de onde veio tanto dinheiro e, com aquele sorriso maroto, ele responde: “– Do banco que não foi, fessora! Isso é dinheiro suado...”. Fácil prever que William não completou o ano letivo. Alguns meses depois, nunca mais o vi.

Andréa Carvalho
Enviado por Andréa Carvalho em 29/10/2020
Reeditado em 29/10/2020
Código do texto: T7099352
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.