Para o meu irmão de alma.

Conheci o William no segundo ou terceiro mês de namoro com o meu futuro marido.

Eu não sabia que ele era especial e, confesso, não tinha conhecimento de como lidar com uma pessoa com tais características. O seu jeito de falar era diferente, muito lento nas atividades. Reconheço: uma das pessoas de sentimentos mais nobres que conheci. Na educação, na disposição em ajudar, no respeito e jamais o vi fazer qualquer tipo de agressão.

Aos poucos fui aprendendo a lidar com ele, mas nunca escondi as minhas limitações. Sei que precisei de muito tempo, pois eu havia tido uma educação fundada na eficiência, na busca constante do conhecimento, em não saber esperar, em não ter paciência, na agilidade para todas as funções e a pressa não passava de uma obrigação moral. Deparar e passar a conviver com o contrário me provocou angústia e uma dificuldade extrema em lidar com a lentidão para qualquer coisa.

Muitas histórias em família, muitas engraçadíssimas, inesquecíveis. As festas, os casamentos, o nascimento de sobrinhos, o nascimento do meu filho e o orgulho do William em falar dos sobrinhos me deixava à vontade para lidar com uma pessoa de coração tão puro, meigo e muito infantil.

Ele sempre foi infantil. Bebia leite que só. E a mãe era referência para tudo. Ele chamava a minha sogra de “mã” e u tinha dificuldade em aceitar ouvir um homem de mais de trinta anos falando assim.

Em todas as coisas imitava os pais. O meu sogro, por exemplo, era especialista em comprar pão. “O pon”, dizia o sr. José Moratta, no seu sotaque de quem viveu na Argentina muitos anos, desde quando a sua família resolveu fugir da Espanha durante o período de famigerado franquismo. Então, em qualquer ocasião, lá ia o William também comprar “pon”. E não adiantava dizer que eu iria assar pão de queijo, tinha pão de forma e outras alternativas... não tinha jeito. O pai comprava, ele teria que comprar também.

Eu ficava desolada quando ele chegava em casa de noite com um pacote de uns 15 pães...

Eu falava: “William, mas por que tanto pão?”

- “Já fica prá amanhã”.

-“Mas o pão fica velho. É bom o pãozinho crocante...”

-“É só colocar no forno”.

“Mas qual a vantagem, William???Era melhor comprar o pão fresco de uma vez”...

Mas o William nunca entendeu isso... e tínhamos que comer pão amanhecido... nem sei quantas vezes!

Com a sua mãe assistia o programa Roda a Roda da Jequiti ele assim permaneceu até o fim da sua existência. O pior: vinha bater na porta do quarto onde estudo para que eu assistisse junto. Acho que eu não merecia isso...

E, com os anos, as mortes foram acontecendo: pais e o irmão mais velho foram embora e ele ficou só naquela casa abençoada da Vila Sônia.

Casa que foi festeira, com brilho próprio, com roseira no quintal, mas tinha figueira também que um dia o meu sogro resolveu cortar.

Casa de muitas histórias, de encontros e conversas, além da macarronada esperta aos domingos, dos bolos e dos incontáveis brigadeiros nas festas das crianças.

Brigadeiros feitos com as latas de leite condensado sendo compradas aos poucos, ao longo de uns tantos meses, para que , no calor da hora, os doces enchessem pratos e olhos dos convivas.

Mas o William foi ficando só, doente, e sendo cuidado por primos, tios e por nós, mesmo à distância. Por vizinhos também.

Quando alguém morria ... bem, ele nunca sabia a causa. Preferia dizer que a pessoa tinha tido um ataque e ponto.

Trouxemos o William para a nossa casa em Florianópolis. Tratamos, cuidamos, levamos de volta para tratar no Hospital das Clínicas. Fraldas, insulina, medicamentos para hipertensão... tudo.

Nos últimos dias o meu coração apertava ao vê-lo com total incontinência e com uma infecção prolongadíssima que não havia antibiótico que curasse.

E também me flagelava a alma ter que comprar revistas, lápis de cor e apontador para ele passar o dia se ocupando.

E assim foi durante uma vida inteira.

O William resolveu partir.

A cadeira de balanço ficou sem movimento na sala. Não tem mais caixas e caixas de leite semidesnatado na despensa. Nem fraldas e o cheiro de urina no quarto logo pela manhã. Nem máquina de lavar abarrotada todas as manhãs. Doei o caderno de caligrafia e os lápis de cor para a filha do zelador. As roupas foram para os necessitados.

O meu marido enterrou o único irmão sobrevivente numa São Paulo infestada pelo coronavirus enquanto eu cuidava de uma mãe acidentada no Paraná.

O William não teve um ataque. Ele apenas se libertou. Simples assim.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 29/10/2020
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