Um texto notável para tempos sombrios.

Estamos, mais do que nunca, padecendo de normose. Um conceito relativamente novo que define normose como sendo um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à perda do sentido da vida e “ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um desequilíbrio crônico e predominante”, segundo o psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema .

Evidente que não somos todos normóticos. Aqueles que não são sofrem e muito diante das atrocidades que se escancaram aos nossos olhos, perdem o sono mediante uma indignação sem limites, ao mesmo tempo padecem de uma sensação de impotência incalculável, como essa agora, diante do assassinato do homem negro no Carrefour de Porto Alegre. E esse homem tem nome: João Alberto Freitas.

Li que os assassinos eram pessoas (pessoas????) ainda jovens. Um assassino tem 30 anos e o outro (volto a usar a palavra assassino) tem 24. Pensar que pessoas (pessoas??) com tão pouca idade são capazes disso??? Não aprenderam nada? Não tiveram pais, avós, professores com um mínimo de dignidade e respeito ao próximo para poder ensinar alguma coisa a esses dois elementos? Nada? Não tiveram nenhuma referência positiva, que desse algum sabor em olhar o outro como um irmão? São muitas as interrogações. Tristes interrogações!

Diante dos fatos e de opiniões sensatas e plausíveis e outras tantas aberrações que se ouve ou lê, partilho uma reflexão profunda e pontual nos deixada por Mauro Nadvorny que é Perito em Veracidade e administrador do grupo Resistência Democrática Judaica publicada hoje no site progressista Brasil 247.

Lá vai:

Joga pedra no Carrefour

Enquanto permanecerem voltados para o Carrefour, a Casa Grande agradece. Entregam um anel, mas mantém os dedos. Amanhã tudo volta ao normal, eles seguem no poder e nós continuamos convivendo com o racismo nosso inimputável de cada dia

O que aconteceu nas dependências do Carrefour Zona Norte, em Porto Alegre, foi a expressão mais cruel de uma barbárie. Uma morte imperdoável, mas três famílias destruídas. Uma tragédia brasileira onde o racismo é endêmico.

Eu fui parte da história que culminou na lei antirracismo 7.186, de 5 de janeiro de 1989. Foi com base nela que mais tarde alcançamos a condenação de Siegfried Elwanger, um neonazista dono da Editora Revisão que publicava exclusivamente livros de autores antissemitas. Quando o Movimento Popular Antirracismo, do qual fui um dos fundadores e militante, começou sua luta contra Elwanger, a única lei que poderia condená-lo era da ditadura, a Lei de Segurança Nacional.

O Brasil possuía uma lei antirracista desde 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos,promulgada por Getúlio Vargas, tratava o racismo como crime de contravenção. A lei de 1989 foi mais clara, mais ampla e também mais objetiva punindo os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Uma coisa é a existência da lei, outra é a sua aplicação. Todos os dias são cometidos crimes de racismo, mas as autoridades policiais tendem a ser complacentes alegando tratar-se de discussões acaloradas, coisas ditas no calor da emoção, palavras fortes sem a intenção de ofender, injúria racial etc.

A lei prevê penas de prisão de até 5 anos e o pagamento de multa, mas desconheço quem esteja cumprindo prisão por crime de racismo no território nacional. Existem condenações em primeira instância, mas todos aguardam em liberdade por recursos interpostos por seus defensores.

O racismo no Brasil é conhecido. A população brasileira é composta por 50% de negros e pardos, mas sua representatividade política é inexpressiva. Dois em cada três detentos, são negros ou pardos. Socialmente encontram-se majoritariamente nas classes C e D. Foi somente com a criação das cotas nas universidades que o país começou a saldar, minimamente, uma dívida histórica com aqueles que escravizou e explorou.

O crime do Carrefour foi cometido por dois seguranças brancos de uma empresa terceirizada, nenhum deles era funcionário do supermercado. A empresa imediatamente rescindiu o contrato com a empresa de segurança, condenou o fato e se colocou ao lado da vítima. Ao que parece, nada disso foi suficiente e toda raiva incontida por anos de humilhação, se voltou contra a empresa.

Neste momento, nada está sendo racional, se fosse assim, o povo indignado estaria se perguntando onde está a condenação oficial do ocorrido pelo presidente, aquele que declarou que o peso de quilombolas se mede em arrobas. Seu vice já disse que não existe racismo no Brasil.

A morte de João Alberto Freitas é a consequência da falta de políticas sociais a favor dos negros e pardos brasileiros, da falta de educação contra o preconceito nas escolas, da aplicação das penas previstas na lei antirracista e principalmente devido a eleição de um presidente preconceituoso que se elegeu com os votos dos oprimidos.

Atacar as lojas do Carrefour pode dar vazão momentânea a esta raiva por tudo o que está acontecendo, mas no dia seguinte, a consequência disso será mais famílias atingidas pelo desemprego. Funcionários que vão pagar por um crime que não cometeram e que muito provavelmente, em sua grande maioria, senão na sua totalidade, são solidários a vítima.

Até aqui, uma família em luto e mais duas, a dos agressores, que perderam seu sustento, sem falar nos demais funcionários da empresa de segurança que também vão ser despedidos pela perda do contrato. A tragédia do racismo não se restringe apenas aos envolvidos diretamente, ela é uma tragédia nacional.

O Carrefour não é o nosso inimigo. Quem é responsável pelo que aconteceu é a falta de punição exemplar ao presidente do país que explicitamente e sem nenhum pudor, expõe seu preconceito contra as minorias, antes e depois de eleito. O inepto que governa um país jogado ao acaso da pandemia, que pouco se importa com as vítimas que já chegam a 170.000, que insiste em seu devaneio de que no Brasil todos tem a mesma cor. O exemplo de um ser desprezível que governa para a Casa Grande.

Enquanto permanecerem voltados para o Carrefour, a Casa Grande agradece. Entregam um anel, mas mantém os dedos. Amanhã tudo volta ao normal, eles seguem no poder e nós continuamos convivendo com o racismo nosso inimputável de cada dia.

Vera Moratta e Mauro Nadvorny
Enviado por Vera Moratta em 22/11/2020
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