Sandra Fayad
VIAGEM  LONGA
 
Eram sete horas da manhã do dia 12 de fevereiro de 1960.
Estávamos ali na porta do único hotel de Catalão, o Hotel dos Viajantes, prontos para partir naquela jardineira com o motor barulhento ligado. Agora só faltavam as despedidas da mamãe e dos outros parentes que foram em caravana fazer o nosso bota-fora. Papai, nesse momento, era toda a nossa segurança, pois Carlos Alberto (9) e eu (quase 12) iríamos fazer uma longa viagem ao desconhecido e só ele poderia nos salvar de algum mal que porventura viesse nos afetar. A viagem acontecia porque, morando na Fazenda a 50 km de distância da cidade, meus pais não queriam que ficássemos sem estudar. Havíamos morado todos os períodos letivos até então em casa de um irmão da mamãe que não tinha filhos, mas fomos despejados para dar lugar aos dois irmãos do meio, que agora atingiam a idade escolar. Meus tios achavam que quatro crianças sob sua responsabilidade era demais, especialmente porque, de todos, eu era a mais “teimosa”. Se fossem permissivos agora, dali a pouco seriam seis, já que os pequenos também iriam precisar de escola. Então resolveram cortar logo parte da mordomia e disseram aos meus pais que arranjassem outro lugar para nós, os mais velhos. Papai não vendo outra saída, apelou para suas irmãs que, mesmo morando muito longe, estavam bem de vida e não se negariam a dar-lhe esse auxílio. De fato, elas prontamente atenderam e autorizaram a nossa ida. Mamãe, que era professora rural, sofreu muito por ter que concordar com essa solução, mas era preferível ficar distante dos filhos do que vê-los sem estudo.
            - Sem estudo, ninguém vai pra frente - dizia.
Depois das despedidas ensopadas de lágrimas como em um enterro, partimos para Araguari, que fica a 70 km de distância. Como a estrada era de terra e a condução parava muitas vezes para apanhar e deixar passageiros, chegamos bem na hora do almoço. O motorista desceu primeiro sorridente. Desta vez o motor agüentou o tranco, não furou nenhum pneu nem quebrou nada com as pancadas dos buracos, e o limpador de pára-brisas nem precisou ser acionado. Enfim, tinha sido uma viagem perfeita e ele comemorava o fato de ter desembarcado os passageiros sãos e salvos no destino, bem antes do trem partir.  Ali na Estação já estranhei um pouco. O movimento era grande para os padrões que conhecia. Havia gente, malas e caixotes demais passando diante dos meus olhos assustados, fazendo-me ficar encolhida num cantinho, enquanto meu pai e meu irmão devoravam a matula que mamãe havia preparado para a ocasião.
Come, Sandra! Ainda tá longe. Você vai ficar com fome - insistiam eles quase ao mesmo tempo.
Não quero. Tô enjoada.
Era sempre assim. Toda vez que eu viajava em veículo à gasolina, aquele cheiro forte conjugado com o balanço causado pela buraqueira das estradas me fazia enjoar e até vomitar. Eu chegava ao destino amarelo-esverdeada, com olheiras e enxaqueca.
A Sandra sofre do fígado - diziam.
A palavra enxaqueca só apareceu muitos anos depois e o tratamento para minimizá-la só recentemente.
Lá pelas quatro horas da tarde, já estávamos no vagão de passageiros, prontos para partir rumo a São Paulo. Papai, que havia feito umas economias para essa viagem, alugou uma cabina para passarmos a noite. Era bem pequena, mas tinha duas camas estreitas em forma de beliche e um banheiro minúsculo. Ele dormia na cama de cima e eu e meu irmão na de baixo, com as cabeças e os pés invertidos.  A primeira noite passou logo, pois estávamos muito cansados, mas a segunda foi muito demorada. Criança é sempre do mesmo jeito em qualquer lugar do mundo e em qualquer época. Carlos e eu, cheios de energia, havíamos passado o dia explorando os dois vagões de passageiros e o vagão-refeitório, a ponto de sermos repreendidos várias vezes. O fato é que à noitinha, já sem novidades para ver ou fazer, queríamos apear. Quando fomos informados que ainda faltavam uma noite inteira e mais algumas horas para isso, ficamos boa parte da noite atenta ao passar das horas, como se isso fizesse o relógio andar mais rápido. 
Até que enfim a claridade denunciou que o dia despontara. Papai nos levou ao vagão-restaurante para tomar café com leite e comer pão com manteiga. Depois recolhemos toda a nossa bagagem e nos colocamos na posição mais próxima da saída. Não me lembro bem, mas acho que desembarcamos perto do meio-dia, na famosa Estação da Luz. Dali, depois que papai obteve algumas informações, apanhamos um táxi rumo à Rodoviária, pois era lá que iríamos iniciar o último trecho da viagem. Era sábado de carnaval. O grande movimento de gente e veículos nos deixava, ao mesmo tempo, assustados e excitados. No entanto, carecíamos de uma casa, um lugar seguro. Entramos no ritmo rápido daquela cidade para ver se alcançávamos logo o destino. Na chegada da Rodoviária, vimos pela primeira vez o Carnaval de Rua. Grupos de pessoas fantasiadas e cercadas por cordões de isolamento dançavam e cantavam ao som das batucadas, parecendo com a Congada da Festa do Rosário, no mês de outubro, em Catalão. Não estranhei. E até gostei de ver a alegria das pessoas, rodopiando e fazendo umas piruetas.
Domingo pela manhã, finalmente desembarcamos na Rodoviária do Rio de Janeiro. Papai foi ao Posto Telefônico, para avisar as minhas tias que já estávamos lá.  Foram nos buscar na Vemaguete do Tio José, que era motorista de táxi. Eu não me lembrava de nenhuma daquelas pessoas, se é que já as havia visto alguma vez. Cochichei com o Carlos e ele falou também que não sabia quem eram. Enquanto conversavam com papai sobre a viagem e percorríamos as ruas da Cidade Maravilhosa, com o Carnaval  fervendo em cada esquina, senti uma tristeza enorme, um vazio cresceu dentro do meu coração. Se a mamãe estivesse ali, não esqueceria jamais que dia era aquele. A saudade tomou conta de mim, enquanto eu me conscientizava de como agora ficara difícil vê-la novamente. Então, virei-me para o lado esquerdo da janela de trás do carro, disfarçando as lágrimas e pensei: vão ralhar comigo se me pegarem chorando agora. Então, com as lágrimas dependuradas nos olhos e a respiração suspensa, eu disse a mim mesma: faça de conta que todo esse pessoal está comemorando o seu aniversário. Engula o choro e sorria! Pensa que eles estão dançando e cantando pra você.
 
 
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 25/11/2020
Código do texto: T7120410
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