Justifique seu voto!

Dentre as inúmeras capacidades humanas, uma, em especial, quase diariamente tem se manifestado para mim, seja através de um livro, filme ou mesmo o comentário de alguém. Quando um assunto parece persegui-lo, é preciso expô-lo no papel, procurar entender o que está querendo lhe dizer. De forma quase luminosa, notei-a no livro ESCRAVIDÃO - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume um da trilogia do escritor paulista Laurentino Gomes, que se propôs, acertada e corajosamente, descrever e analisar a espinha dorsal da nossa história: a Escravidão no Brasil. De modo arrebatador, o livro começa com a seguinte frase do Padre Jesuíta Antônio Vieira: “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África.” Curiosamente, a observação de Vieira cita os elementos que substantivam a incoerência da conflitiva relação Igreja versus Escravidão: Corpo e Alma. Ordens religiosas, como a dos Jesuítas, não só serviam-se da mão de obra cativa, lucravam e sustentavam-se com o comércio negreiro. Como conciliar então os ensinamentos do Cristo com práticas absurdamente contrárias? Em sua homilia a um grupo de escravos na Bahia, o mesmo Jesuíta apresenta uma atordoante suposta solução ao dilema, deveriam estes se regozijarem por terem sidos retirados da barbárie pagã em que viviam no continente distante e, milagrosamente, salvos pela santa igreja católica no Brasil.

Hannah Arendt, filósofa e teórica política alemã, dedicou quase uma existência buscando compreender as origens e motivações da prática do mal. De origem judaica, Arendt foi perseguida e presa em um campo de concentração nazista, mas conseguiu escapar e refugiar-se nos Estados Unidos. Em 1961, a serviço de uma revista Nova Yorquina, é enviada a Jerusalém para cobrir o julgamento de Adolf Eichman, militar nazista que fora responsável por toda logística de envio dos judeus aos campos de concentração. Para sua perplexidade, deparou-se com um homem medíocre que, quando questionado sobre seu papel no passado, afirmava calmamente que apenas cumprira, sem questionamentos, as ordens designadas pelos superiores. “Foi como se naqueles últimos minutos estivessem resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou — a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos” ,escreveu Arendt.

Vieira e Eichman são exemplos máximos da “excepcional habilidade” criativa de justificativas insólitas, mas que, inevitavelmente, leva-nos a refletir sobre a diversidade de desculpas e argumentos cotidianos também capazes de infligir dor e sofrimento. Diferente da ética, a moral é mutável, e, ao olharmos para o passado à procura de significado e entendimento, é desaconselhável não considerá-la como tal, visto que há o risco de se despencar no desfiladeiro do anacronismo, conforme conceitua Laurentino em Escravidão: ”[...]a avaliação ou o julgamento de personagens e acontecimentos do passado com base em valores e referências do presente”. No entanto, é possível afirmar com segurança: corrupção, fraude e promessas falsas produzem danos devastadores desde "Que o mundo é mundo", como dizia meu Pai.

Hoje (29/11) haverá eleições em 57 municípios brasileiros. Os que estarão impedidos por motivos diversos, prestarão contas à justiça eleitoral, mas os que votarão terão que justificar à própria consciência.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 28/11/2020
Reeditado em 16/01/2021
Código do texto: T7122667
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