"NÃO SOU FREIRA NEM SOU PUTA" (Rita Lee)

Ela tinha unhas azuis e um resquício tardio de juventude. Por muito tempo tinha sido filha, irmã, esposa e mãe. Agora estava sozinha, sem pai, sem mãe, os irmãos com suas vidas, os filhos construindo seu rumo. Era preciso encarar de frente aquilo que sempre tentara ignorar. Fora jogada no palco,de repente, e precisava com urgência dizer alguma coisa que fizesse sentido na peça em que iria atuar dali pra frente. Então, mesmo tropeçando nas primeiras falas, descobriu, após algum tempo, que os outros atores que ali se encontravam, também não sabiam o texto de cor, aliás, não havia texto algum... estavam contracenando a prórpia Vida ...

Ontem uma pergunta surgiu incômoda, ao lembrar de tudo que tem sido a minha vida: quem sou eu afinal?

Diante de uma pergunta dessas, à queima-roupa, quando o vinho já fazia um efeito complicador da lucidez necessária para um tal questionamento, eu, como pedra de gelo na beira do rodapé, fui me desmanchando em um longo filete de água sobre o assoalho, que ,crescendo devagar, não tendo um declive a favor,avançava em ponta arredondada, exposta e indefesa, uma forma derivada daquela que parecia estar aprendendo a se sentir inteira, uma igual no mundo dos sólidos elementos. Pois não contava com um acontecimento capaz de me fazer desabar para a líquida e certa sensação de "ser menor" das fêmeas da raça humana, desde há muito marcadas no universo masculino como seres cuja sexualidade é um tanto "difusa", e que eles, por conveniência ou medo, sempre tentaram ignorar. Não contava cair na velha armadilha do macho que se vale de sua condição para nos dizer palavras que, invadindo nossa intimidade de forma agressiva e crua, provocam um estado de total desmoronamento.

Aprendi com meu avô , meu pai e meu irmão mais velho, a reconhecer que eles tinham nas mãos o poder de decisão, eles pagavam as contas, eles diziam sim ou não e eles passavam a chave na fechadura. É verdade que nunca fui muito bem mandada, apesar de minha aparente fragilidade. Por isso, dentro de mim então, ratificou-se a idéia de que se eu fosse "forte" como os homens, eu ficaria em posição de igualdade ou pelo menos não teria que mendigar nada a nenhum deles. Isso aparecia na prática como uma certa agressividade, onde, na minha adolescência, eu não permitia de forma alguma que qualquer um me "tocasse" mais intimamente. Aquele aparente recato era, na verdade, a defesa que encontrei para não ser submetida, nem merecer o desdém e não me sentir naquela maldita posição de inferioridade. Eu odiava aqueles rapazes em grupos que , eu estando sozinha, aproveitavam para dizer obcenidades. Eu odiei também aqueles senhores que não tiravam os olhos de mim quando cheguei aos onze, doze anos. Esta invasão masculina , onde ainda hoje homens conhecidos de minha família não se pejam de ficar encarando minhas filhas, onde precisamos nos esquivar de abordagens indesejadas, isto ainda me deixa muito assustada.

Mas eu não sou freira. Não sou moralista de plantão. Não tenho vergonha do meu corpo e daquilo que ele pede. Mas também não sou puta. Não me entrego de forma banal, em qualquer cama. Fui casada por mais de vinte anos e tive por todo este tempo somente um homem na minha vida. E agora, sozinha, percebo que tive uma trajetória muito dura, trabalhei fora, tive filhos, cuidei de casa. E o que fiz de mim mesma? De repente, diante da possibilidade de algum relacionamento, percebo que ainda estou lá, ouvindo alguém me dizer que não casasse, que ia jogar fora minha juventude... vejo-me lá, recebendo uma carta a uma semana do casamento, da pessoa que eu mais tinha amado. Da qual eu tinha fugido assustada, pois sabia que se permanecesse, iria me prender ainda muito jovem. Não estávamos na época onde casamentos se desfaziam com facilidade.

Mas o mais contraditório , é que os direitos masculinos existiam gratuitamente, sem eles terem conquistado isso com algum esforço ou merecimento. Dessa forma, ainda criança, eu percebia a boa fé de meu avô com vizinhos menos escrupulosos, a fraqueza de meu pai, diante da rapinice de seus irmãos, a covardia de meu irmão, quando um menino mais forte faltou ao respeito comigo e ele se calou. É certo que, mesmo sem eu elaborar em palavras diretas, tal contexto marcou toda a minha forma de ser.

Então, quem eu sou realmente? Sou tudo isso que acabo de contar, mas sei que aquele fantasma da fêmea inferior ainda me assombra a existência. E o grande entrave para deixar fluir esta mulher inteira, segura, passa pelo problema do toque. O toque de alguém que eu não veja como inimigo. E inimigo era aquele que, ao me ter em suas mãos, seria meu "superior" , aquele que ia dispor da minha vida ao descobrir que eu era "igual" às outras mulheres, podendo catalogar-me como mulher séria ou "vagabunda". E isso eu não podia permitir. Nenhum homem teria esta chance. Nenhum!!

Eu estou nesta vida, tentando desde há muito existir sem a ajuda de qualquer homem. Mas sendo humana, eu estou sujeita a amar um deles. E estou aprendendo muito ultimamente. Com eles. Muito. Estou aprendendo sobre a sua fragilidade, seus medos e sua insegurança desmistificada nestes novos tempos, onde o véu de muitos mitos foi definitivamente retirado. Posso mesmo que tardiamente, uma fêmea em sua inteireza, que seduz, que descobriu seu valor real e que neste caminho, estará encontrando seu eixo, sua integridade esfacelada lá na infância distante. Um caminho para o passado, uma porta que se abre hoje pra mim, pois voltando ao ponto de partida tentarei consertar o que foi danificado e estarei de volta pronta para viver intensamente de igual para igual em qualquer relação e dona das chaves de todas as portas que me interessarem.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 27/10/2007
Reeditado em 02/05/2008
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