NOVEMBRO OPACO

Outubro rosa, novembro azul. Virtualidades? São meses coloridos? Cores, cores que designam a aparência das coisas ou dos nada tácitos acordos sociais. Cores que compõem, dado nosso “aprendizado”, uma aquarela de valores que usamos para distinguir coisas e também para rotular pessoas, como fazem com a enganosa cor das peles dos brasileiros: branca, preta, amarela. Se, de fato, eu encontrasse um brasileiro branco ou preto ou amarelo, creio que desmaiaria, pois seriam todos surreais. E existe humano branco, preto ou amarelo? Mesmo um albino, se fosse branco, deveria ser, aos meus olhos, da cor deste papel virtual no qual agora escrevo. Dizem que é a incidência de luz que nos faz crer na coloração que acreditamos notar. Essa luz pode fazer nossos dias mais alegres ou mesmo insuportáveis. Luz, luz, luz. Quem tem luz aí? Penso agora em Sílvio Santos animando seu auditório: “Quem vai querer luz aí?” E, ao Brasil, eu perguntaria: quem vai querer um novembro opaco aí?

Chuva, muita chuva, tempestade nutrida de trovões e relâmpagos assombrosos. Esse terror por que passavam frágeis mortais no extremo norte do Brasil ainda não era nada para a administração universal. Festival tão eloquente não poderia findar sem deixar rastro de medidas mais extremas. Um presente para os amapaenses: “Chega de estrondos no céu, tomem um estrondo na terra ... de vocês”. Tem-se então uns segundos de pipocos como fogos de artifício em virada de ano. E, pafff, todo mundo no escuro. Cada um na sua casa ou em qualquer outro lugar enuncia pra si mesmo um breve pensamento lamentoso: “Poxa, faltou luz! Ah, com essa chuva nessa tempestade é natural. Daqui a pouco volta”. Passa-se a primeira noite. No dia seguinte, nem luz nem água. Pipocam agora notícias desencontradas: o estrondo em terras amapaenses foi de uma subestação de distribuição de energia elétrica, vítima de um fabuloso raio. Dia inteiro sem água e sem luz. Alguns, sem caixa d’água preventiva, correram às margens do Amazonas para lavar o grude do corpo em águas insalubres. Esconde-se o sol do primeiro dia. A noite sem energia elétrica fica ainda mais longa para os descapitalizados, para os desabastecidos de gerador ou de poço artesiano, produto e arte de épocas até já remotas, próximas ou concomitantes até do uso de lamparinas e fogão à lenha somente. No segundo dia a aflição aumenta. No terceiro, a urbanidade faz a trouxa, põe sobre as costas e dá-no-pé, abandonando muitos citadinos. É briga na fila do gelo, briga na fila pra comprar água, estranhamento na espera de acesso de tomada pública no aeroporto pra se carregar celular; um supermercado que também havia disponibilizado tomadas para populares recarregarem seu aparelho perdeu a paciência, suspendendo a solidariedade do dia anterior, enfim, o deus-nos-aguda se impõe de forma brutal.

O que ainda animava a urbanidade de alguns poucos (do grupo desses muitos também desprovidos de tudo) era considerar serem vítima de uma fatalidade: “Fazer o quê, se fomos azarados?” Outros, mais introspectivos, lamentavam merecer o castigo de Deus: “O que fizemos para atrair um raio vingativo sobre nossa estação de fornecimento de energia elétrica?” Cada um mensurava e bolava explicação para o evento penoso. O preço de tudo subia alopradamente. Ora, para o espírito capitalista, desgraças sempre geram preciosas oportunidades de lucro.

Passados uns dez dias de privação inominável, uma previsão bíblica (Lucas 8:16) se realiza no cotidiano dos amapaenses: “Porquanto não há nada oculto que não venha a ser revelado, e nada escondido que não venha a ser conhecido e trazido à luz”. A magia da fatalidade se desfez como o apagão que assolava e a água que faltava, quando a polícia civil informou o laudo da perícia que desmistificava o fenômeno: não foi ataque de um deus furioso, foi explosão do equipamento por mera falta de manutenção, irresponsabilidade e maldade humanas, pois a empresa privada que ganhava pela concessão também não tinha, como rezava o contrato, equipamento reserva. Sob grande grita e muito furor, a revolta de populares naturalmente se materializava em justos protestos pelas ruas escuras, revolta criticada e rechaçada pelos geradores ou administradores do caos, vez que viviam em seus paraísos bem equipados, não padecendo das privações do cidadão comum, sem água e sem luz ou com rodízios precários em suas áreas.

E, no seguir da carruagem desengonçada, novamente Lucas 8:16 lança mais uma flecha certeira, com um grupo de jornalistas desvendando outro mistério: não havia profissionais, o apagão também foi consequência das reformas feitas sob medida para danar a vida do povo trabalhador. A empresa privada, logo após a promulgação da Reforma Trabalhista de 2017, demitiu os engenheiros capacitados para fiscalização dos equipamentos e supervisão dos trabalhos, com fins de recontratá-los rebaixadamente no quesito remuneração ou de contratar outros trabalhadores também com salários acintosos. O lucro, o lucro voraz submeteu o povo do Amapá a um final de ano traumático e revoltante. Funcionários da empresa pública de energia tiveram de cuidar da lambança da empresa privada. Dói saber que essa empresa pública está na mira da privatização, para satisfazer o apetite de insaciável mercado.

Quando as mínguas luzes de humanidade se apagam nos maus administradores, a escuridão sorri e se espraia como cordilheiras constrangendo sanidades. É momento de se abrir e fechar rapidamente a garrafa, reintegrando ali o gênio mau, que esteve livre e só realizou pedidos funestos.