Eu, Afonso e o Mundo

Me chamo João. Nasci no ano 2000, e, contrário ao que todos pensavam, naquele ano o mundo não acabou. Assim também foi em 2012, apocalipse este que pude vivenciar de maneira mais ativa, posto já ter sido, havia tempos, cuspido do ventre. No final das contas, acabei por também não assistir ao apocalipse Maia, que se mostrou ser só outra promessa. No entanto, naquele ano (ano em que a vida me foi cruel) começou em mim uma polarização interna, e das minhas pueris entranhas nasceu Afonso.

Afonso tem minha psiquê como morada. É um senhorzinho pacífico, de óculos baixos e suspensório, que vive em algum átrio ou ventrículo do meu coração, ou em alguma das minhas sinapses cerebrais. O fato é que ele aqui vive, e sei que é numa casinha toda de madeira. Enquanto cá fora, crescendo na cidade, navegando no mar de asfalto como um pirata de jeans, ora lutando contra narvais a bombordo, ora desviando de canhões a estibordo, eu tentava aprender como equilibrar os pratos na vida em alto-mar revolto. Afonso tocava discos e entoava canções que reverberavam em mim. Entre um chá e outro, olhando para dentro de mim mesmo, via Afonso me ensinando a consertar o meu sextante quebrado, para que nesse asfalto congestionado de tantos piratas como eu, eu tivesse alguma chance de não afundar.

Afonso, na medida em que a criança em mim ia sendo assassinada pelo veneno do mundo, vinha à tona para me ajudar a solucionar as situações da vida. O mundo em que vivemos ainda está muito fechado a ouvir os de 19, e extremamente fascinado com os de 40. Assim sendo, admito, fui quase que um cúmplice da morte da minha meninice, enterrada como indigente. O que restou então foi Afonso, eu e o mundo a ser enfrentado. Cada dia mais, nas falas e nos jeitos, fui me submetendo a um envelhecimento em alambique de carvalho, com meu corpo e feições preservadas, porém a alma envelhecida, sempre acompanhada do parceiro Afonso. A luta diária que é a vida me impeliu a ver cada nascer do sol como igual.

Quando nada me parecia surpreender, e a vida se tornava cada vez mais complexa, surge a pandemia. Todos nós sofremos com ela, por certo, mas nesta altura, encontrava-me com o coração estilhaçado por um amor arrancado, dor a qual mesmo os espíritos mais antigos se curvam.

Morta a criança em mim, apenas Afonso assistiu às minhas lagrimas.empurrou-me a escrever poesias, a crescer com a dor. Apesar da minha vontade de sair correndo pelas ruas e avenidas, gritando minhas ideias e meus ideais, talvez não seja eu que não esteja pronto para o mundo, mas o mundo do modo que é não está pronto para nenhum de nós, ainda mais para Afonso. Tendo enfim visto isso, vi que as regras e ângulos que aprendi são nada senão formalidades que nos impedem de ver além da superfície, e o mundo na verdade está num casulo, do qual partirá a borboleta que pouco lembra a crisálida.

Neste (espero que) admirável mundo novo, quero levar Afonso para colher flores, num mundo em que se possa ver cada lusco como único, e quando a noite chegar, quero lhe massagear os pés e gradecer por ter me ajudado a sobreviver na barbárie trajada à rigor na qual que chamamos sociedade. Quero levar Afonso aos bares, ver gente. Abraçar gente. Amar gente.

Neste novo mundo, não precisarei de cabelos brancos para ser ouvido ou reconhecido. Neste novo mundo, poderei velejar o azul do mar sem canhões e com menos narvais, e mostrar a beleza das nuvens e das gaivotas ao meu velho e caro amigo. Neste mundo, viverei sob minha cabeleira enegrecida e cacheada, com meu jeans e minha roupa estampada em xadrez, e poderei ser visto e ouvido como sou, sem me furtar da velhice precoce.

Acabada essa jornada, pendurarei na parede de Afonso um quadro do meu "eu" menino, reestabelecendo o elo perdido, e deixarei meu velho amigo a olhar ternamente aquela face rosada, tomando seu Scotch, e seguirei os novos rumos até que o tempo promova nosso reencontro.