Projeto de... de quê mesmo?

Desde a minha juventude leio muito. E o melhor mesmo foi a presença do meu tio Dante a me dar as primeiras orientações para leitura logo na minha adolescência nos anos 70. Ele sempre me dizia: “leia nas entrelinhas”.

Claro, em tempos de ditadura, o mais inteligente a se fazer, no tocante a aquisição de conhecimento, era ler nas entrelinhas.

E assim fui construindo conhecimento, sempre a interpretar as sutilezas, as nuances que os diversos autores tendem a se expressar.

Ainda em tempos de ginásio eu era olhada com desconfiança e alguma indagação pelos colegas. Eles e elas eram alegres, como qualquer adolescente sem grandes compromissos com as coisas da vida, mas eu tinha de tudo: interesse , entendia ou pensava entender as dificuldades que estávamos vivenciando, os descalabros, os desafios sem conta. Eu preferia abrir as cortinas, quebrar muros a marretadas, plantar e saber que alguma colheita haveria de acontecer.

Não me sinto surpresa com o atual desgoverno. Antes, eu tinha já algumas certezas de que o país escorregaria velozmente para o abismo desde o golpe de 2016. Evitei em muito usar as palavras nazismo e fascismo para defini-lo, mas entendo que o texto que ora partilho com os meus colegas é por demais importante e oportuno para esses tempos sombrios. Texto primoroso da autoria do músico e professor da Universidade de Música de Hanôver, Alemanha. Jean Goldenbaum. É membro fundador do ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’ e fundador do coletivo ‘Judias e judeus com Lula’.

Publicado hoje no site progressista Brasil 247, lá vai:

Desde o início de toda desta trágica e funesta história que se impôs no Brasil, desde os primeiros momentos em que aquele que viria a ser o mais cruel e mais incapaz líder de toda a biografia da nação, já me eram inequívocas as semelhanças do bolsonarismo com o hitlerismo. Sempre foi claro o papel de “salvador”, a seleção de inimigos e culpados, a incitação da violência, a promessa de recuperar “valores tradicionais perdidos”, a legitimação do ódio ao próximo, a exaltação de um passado militar destrutivo, e tudo isso em uma linguagem idiomática e iconográfica muito bem idealizada e projetada. Todos os elementos estão presentes: o Nazifascismo do século XX é, obviamente, o mais sólido fundamento para o Neonazifascismo do século XXI.

O ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’ publicou em julho de 2020 um importante relatório intitulado ‘O antissemitismo durante o governo Bolsonaro’ (do qual tive o prazer de ser um dos coautores), que possui um capítulo exclusivamente dedicado às semelhanças do bolsonarismo com o hitlerismo. Lá é explicado detalhadamente como o nazismo brasileiro se arquitetou, tomando também como base o trabalho do linguista Victor Klemperer (1881-1960), que apontou que “a ideologia nazista estava alinhada a uma premeditada e cuidadosa alteração semiótica e linguística”. O bolsonarismo – sobretudo através de e sua seita “whatsáppica” – também funciona assim.

Pois bem, dito isto, não é surpresa que grande parte da pauta bolsonarista se baseasse nos valores nazifascistas. Por exemplo, para olhos conhecedores da causa, a “Escola sem partido” foi uma das tentativas de impôr uma educação fundamentalmente nazista no Brasil. Graças a valiosos esforços contrários – e também uma boa dose de sorte, o projeto não foi aprovado. Na parte da ciência, a mesma estratégia: cancelamento de pesquisas consideradas desimportantes ou inadequadas para a ideologia do governo. Enquanto os governos do PT investiram de maneira crescente nos orçamentos dos principais fundos de pesquisa científica e tecnológica do país (CNPq, CAPES e FNDCT), atingindo o ápice no segundo governo de Dilma, após o golpe de 2016 os números foram reduzidos drasticamente, chegando à sua maior baixa em 2020 (segundo a SBPC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). A Cultura também vem sendo atacada de todas as maneiras possíveis, a começar pela extinção do ministério, reduzido a uma mera secretaria claramente enviesada à prática da censura.

Eu poderia continuar a elencar o processo de tentativa do governo bolsonarista de instalação da máquina neonazifascista, mas o intuito deste artigo é tratar especificamente de um dos mais graves ataques: aquele à área da Saúde Mental. Refiro-me à desconstrução da estrutura de assistência aos deficientes mentais e usuários de drogas no Brasil. E por que estes ataques são tão relevantes? Pois eles são claramente parte da política higienista de Bolsonaro, assim como era também a de Hitler.

A máquina assassina da Alemanha Nazista tirou a vida de aproximadamente 275 mil crianças e adultos portadores de deficiências mentais e/ou físicas (segundo fontes do United States Holocaust Memorial Museum). E a ideologia de extirpar da nação os mais vulneráveis, considerados imprestáveis e indignos de existência, encontra ressonância também na Extrema-direita contemporânea, ainda que os processos se deem logicamente de maneira diferente. Bolsonaro não pode enviar os deficientes e os usuários de drogas diretamente à eutanásia ou aos campos de concentração, afinal o mundo hoje é outro Mas ele pode reduzir a pó as leis de proteção e auxílio a estas pessoas, conquistadas ao longo do tempo graças à evolução das sociedades, ao desenvolvimento científico e a consolidação cada vez mais profunda de leis fundadas nos Direitos Humanos. E é isto o que ele está fazendo. E a passos largos.

A primeira a comprovar tal realidade é ninguém menos que a maior autoridade no assunto no país: em 26.11.2020 a ABRASME (Associação Brasileira de Saúde Mental) publicou um valioso memorial intitulado ‘Retrocessos no cuidado e tratamento de saúde mental e drogas no Brasil’. Neste documento a instituição explica de maneira muito clara e objetiva como o desmonte em nome da política higienista se concretiza. Desde o Golpe 2016 a desconstrução foi iniciada, se acentuando logicamente no Governo Bolsonaro. O memorial se inicia da seguinte forma:

“O Brasil tem passado os últimos quatro anos por um forte processo de desmonte dos pressupostos que construíram as últimas três décadas de organização social e comunitária e das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas que foram vanguarda na promoção do cuidado em liberdade e dos direitos humanos.”

E segue explicando especificamente quais são as ações de fato concretizadas ou em direção à concretização:

“O conjunto das iniciativas tomadas visando inicialmente os retrocessos nas políticas públicas, foram se aprofundando impondo uma agenda de contra reforma psiquiátrica no país, tendo como características fundamentais, instrumentos de gestão pública alheios à exigência constitucional da participação social e a valorização de equipamentos privados que têm como imperativo de “cuidado” o isolamento social. Bem como, o aumento dos recursos públicos repassados para os hospitais psiquiátricos (manicômios)”

O parágrafo acima é autoexplicativo, mas eu gostaria ainda de frisar a questão do isolamento social. A ideia de separar, segregar, o “normal” do “anormal” era também uma das bases nazistas, e o ressurgimento dos manicômios deixa isto muito claro. Bolsonaro é o tipo de pessoa que – assim como admira publicamente torturadores – admira também processos como os que ocorreram no Hospital Colônia, em Barbacena, MG, onde entre os anos de 1930 e 1980 cerca de 60 mil pessoas morreram após serem submetidas a condições subumanas, nefasta história muito bem relatada pela jornalista Daniela Arbex em seu livro ‘O Holocausto Brasileiro’.

Assim, de dezembro de 2017 até hoje, diversas ações e iniciativas (entre leis, portarias, resoluções, vetos) foram tomadas visando a reestruturação de todo o sistema de saúde mental e substituindo a ciência pela pseudociência. E não somente manicômios estão sendo novamente instituídos, mas também aquelas que são hoje conhecidas como “comunidades terapêuticas”. Estas entidades, em sua maioria de caráter fundamentalista cristão e anticientífico, vêm recebendo o investimento retirado da Ciência e dos Direitos Humanos, como atesta o ótimo artigo investigativo publicado no portal Agência Pública em 27.07.2020:

“Entidades cristãs receberam quase 70% da verba federal para comunidades terapêuticas no primeiro ano de governo Bolsonaro. Dinheiro público financiou CTs denunciadas por violações de direitos humanos, incluindo LGBTfobia e desrespeito à liberdade religiosa.”

O artigo exemplifica casos de tortura, abuso e outras violações. O aparato público científico (e, obviamente, laico) é desmontado, e o inverso, o privado anticientífico e religioso, o substitui. Ou seja, a política do Governo Bolsonaro consegue não somente atender à sua ideologia higienista neonazista, mas também satisfazer a Bancada da Bíblia e as dezenas de milhões de seus eleitores que seguem este tipo de “visão de mundo”. Ideologia e política alinhadas. Tudo muito bem morbidamente calculado.

Enfim, o que está ocorrendo no Brasil é indescritível e inacreditável que possa ser real em pleno século XXI, sobretudo em um país que há pouquíssimo tempo era visto mundialmente como um exemplo de sucesso em termos de reforma de seus problemas sociais. E um país jovem e de ideologia progressista. Caro leitor, cara leitora, o Neonazifascismo está instalado no Brasil. Muito próximo de vocês já ocorre a separação do humano e do subumano, do puro e do impuro, do socialmente digno e do indigno. Muito próximo de vocês há campos de concentração de roupagem contemporânea, onde ocorre tortura e lavagem cerebral. O bolsonarismo precisa ser parado, afinal o perigo não é somente o terror que vem sendo arquitetado, mas também aquele que já ocorre.

O memorial da ABRASME é concluído com uma lista de 13 entidades que compõem o conselho consultivo da ‘Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial’. Os seres racionais e humanistas que ainda restam no país são a única esperança na luta contra o obscurantismo que está colocando esta nação em um status em que rápida- e diariamente ascende tudo de pior que a humanidade já produziu ao longo de sua história.

Vera Moratta e Jean Goldenbaum
Enviado por Vera Moratta em 09/12/2020
Reeditado em 01/02/2021
Código do texto: T7131724
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