2020

Sempre me julguei pessoa bastante adaptável, preferindo verbalizar otimismo, nos momentos de crise, que assumir de pronto a falência instantânea da coragem necessária, pelo derrotismo precoce que esmaga, sorrateiro, nosso entusiasmo nessas horas, com os pensamentos e os sentimentos contradizendo vergonhosamente nossas débeis palavras. Filósofos argutos, porém, defendem que o ser humano não sabe ao certo do que é (in)capaz, isto é, não conhece suas próprias ações, ou reações ao novo, anteriormente aos fenômenos ou aos fatos que as demandem. Em verdade, a imagem que temos de nós mesmos se constrói e reconstrói é no caminhar.

Por morar em outro estado, somente no início de 2020, tive a oportunidade de passear com a família no Parque Florestal revitalizado (e revitalizante), em Macapá, no Amapá. Foi apenas um dia, mas que rendeu uma satisfação imensa e intensa ao meu arquivo emocional.

Penso hoje que esse presente tenha sido uma lasca de misericórdia do Eterno, pois, como onisciente que é, alimentava antecipadamente minha memória de sensações agradabilíssimas para anediar o impacto do que já vinha se impondo ao mundo do outro lado do Atlântico.

De volta ao estado onde resido atualmente, tive apenas duas semanas de aulas corpo a corpo, olho no olho, na universidade onde trabalho, substituídas que foram por aulas remotas. O surto pandêmico impôs-nos do dia para noite o isolamento social, sendo todos os (ou muitos) brasileiros forçados a, por temor ao vírus mortal, apreciar melhor sua própria companhia, quando se mora só, ou a conviver apenas com os de casa, evitando contatos físicos públicos.

Penso que todos nós, em algum momento, tivemos que lidar com certo sentimento de fim do mundo, rever nossos valores, nossas ambições, reavaliar nossos conflitos existenciais, enfim, nos rearrumar para nos adaptar à nova normalidade. Como estamos em outra época, nosso isolamento foi amaciado pela interação nas redes sociais, espaço no qual cada um dava sua versão sobre a nova realidade, lamentava seus próprios dramas e os dos outros.

Viramos analistas e analisandos simultaneamente. Esse poderoso divã da contemporaneidade ajudou muitos a não sucumbirem a alguma sensação de abandono, pela restrição sanitária, enquanto outros, mais penalizados, foram obrigados a também contabilizar parentes e amigos que partiam sem deles poder se despedir mediante a dignidade de um decente velório.

Como algumas vezes precisava ir ao supermercado, cruzando aqui e ali com pessoas que usavam a máscara apenas como protetor de queixo, o que me gerava pesar e riso ao mesmo tempo, por três momentos achei que tivesse sido contaminada pelo vírus, mas foram (aleluia!) alarme falso. Todavia, como disse certo Salomão: “há um tempo para tudo debaixo do céu”, e, como qualquer outra, sendo eu carne igualmente ambicionada pelo invasor, fui infectada na segunda quinzena de setembro, já que parte de minhas refeições mandava buscar em restaurante, o que me obrigava a contato com os entregadores, que acabavam sendo, mesmo à revelia, dadas a necessidade de trabalho e a demanda de clientes, também, além de vítimas, um dos potenciais transportadores do vírus.

Curti uma semana de febre com dores corporais que foram se intensificando dia após dia. No clímax das dores, delirei: me vi em sonho pedindo a morte, por não suportar mais ter o corpo esmagado por estupendo trator invisível. Foi o sétimo e o último dia de dor no corpo, um sábado. No domingo me dei conta da fraqueza moderada; por telefone, fui encorajada, via whatasapp, por uma amiga e colega de trabalho a ir à UPA. Como não estava com febre nem com falta de ar, sintoma em mim ausente nesse contágio, me despacharam de imediato de volta pra casa. Na segunda me senti bem mal, na terça não suportei mais a fraqueza e procurei uma clínica particular, suplicando que me injetassem um potente coquetel de vitaminas, disposta, dada a necessidade, a pagar por algum alento. Mas, analisando meus sintomas, já havia perdido o olfato e o paladar, sugeriram que eu buscasse a UPA, pois certamente estava com Covid-19, o que a clínica não tratava.

Dessa vez, como estava um pouco febril e com a saturação abaixo do aceitável, fizeram, na UPA, mais por mero protocolo, o exame rápido, que confirmou a infecção, e fiquei em observação nas dependências da Unidade. A fraqueza trazia a percepção de fim de linha e, nesse momento, a morte me foi mais uma vez desejável, já que a sensação era de desaceleração, de descontinuidade daquilo que concebemos como vida, ocasião em que consideramos e bem acordados: por que ter que sofrer até o último suspiro? Uma injeção para dormir eternamente seria bem-vinda. Delírio de moribundo! Ficamos tão fragilizados que nessa hora ansiamos, como criança, pelo colinho do Papai do céu. Perdemos a expectativa, ficamos sem ação ou reação à altura da demanda. Debilitados, estamos entregues aos cuidados médicos, à solidariedade do próximo e à providência divina.

Por experiência própria, testifico, no meu processo de recuperação, que não se trata de uma gripezinha, e que nosso otimismo é alimentado não apenas pela memória de sensações aprazíveis ou por nossa egoica fé, que deveras ajudam muito mas não são suficientes, pois resulta também do (ou se amplifica pelo) impacto das ações dos outros sobre nós, profissionais ou não, afetados e afetando-nos por algo tão precioso que nomeamos de socorro, empatia, compaixão, amor.

Viva o SUS, viva a UPA, Viva o médico, Viva a médica, Viva o enfermeiro, Viva a enfermeira, Viva o auxiliar de enfermagem, Viva a auxiliar de enfermagem, Viva o maqueiro, Viva a assistente hospitalar, Viva o agente de limpeza, Viva a agente de limpeza dessas Unidades, que bravamente, por seu trabalho, disposição e acolhimento, sopram, agitam e revigoram, nessas horas, nossa última centelha de fé naquele que nos dá o fôlego de vida e nos reconecta à pulsão que anima nosso corpo e espírito para mais um tempo de usufruto, junto a familiares, parentes e amigos, das delícias de fabulosos parques florestais encapsulados magistralmente nas vivendas dessa “pérola azulada”, por onde navegamos momentaneamente: nossa morada terrena com seus vulcões e tempestades a nos sacudir e aterrorizar, nos intervalos das brisas e maresias que nos afagam.

Já recuperada, angustia-me, neste novembro macabro, o apagão energético no Amapá e ainda em dias de pandemia. Deus, como sofre, nesta circunstância, a população do meu estado de origem! Como cometem esse crime os poderosos! Que monstruosidade é essa, 2020? Meus familiares, parentes e amigos por lá, tento (polianamente?) confortá-los lembrando a eles que a vida não é só dureza, há horizontes de reequilíbrio que, com fé naquele que nos concede a vida, precisamos agitar na memória ou (re)desenhar seu vislumbre, a fim de continuar nadando, mesmo ofegantes, mirando sempre reais ou mesmo lendários parques florestais que nos sejam amenos, aprazíveis, revigorantes.