Minha mãe

Ela era uma menina de 15 anos, quando fugiu de Alagoas, em um caminhão pau de arara, na noite seguinte a um casamento de conveniência imposto pelo autoritarismo de meu avô, Belarmino, um dileto filho de sua época de cangaceiros.

No salão lotado, já arquitetara com o irmão José, como fugir antes da noite acabar.

Casar com um homem rico, 30 anos mais velho, desatara nela uma profunda indignação, sequer acalentara todos os seus sonhos, sob o crepúsculo do rio São Francisco, que atravessava, sem pressa, a sua cidade, ensinando preciosas lições para o seu coração selvagem.

Em um tempo cruel, em que as mulheres não eram seres humanos, (em alguns lugares, esse pensamento ainda perdura)eram hímens.

No sorriso, temos todos o mesmo dialeto secreto.

Na tristeza, nem sempre, mesmo uma tigresa tem nobreza. A tristeza costuma extrair a realeza, eu a via invocar a ira para não sucumbir, para não abandonar a vontade de existir.

Ela foi uma adolescente alegre, corajosa e valente. Hoje, em tempos de internet e whatsapp, seria aquela adolescente que, se alguém lhe pedisse para enviar uma foto sem roupas, mandaria uma foto do varal vazio.

Seu pai a tirou da escola no primeiro ano, antes que aprendesse a ler, para não escrever carta para namorado. (Ele também não sabia ler) e essa era uma das maiores vergonhas da Dona Maria e eu não tive a decência de ensinar-lhe, algo que me mortifica quando lembro.

Acredito que a vida seja essencialmente, uma questão de perspectiva.

Se eu olho da janela do trem que atravessa uma ponte sobre o rio, em uma viagem de recreio por horizontes longínquos, distantes e desconhecidos, a sensação será embriagadora diante das novidades que intuirei mais adiante.

Se eu estiver nadando no rio(hipótese mais difícil, em um país de rios poluídos pelo esgoto das grandes cidades, das usinas de cana de açúcar e outras tantas...etc) e esse rio não for poluído, estarei, junto com as recordações da minha infância, dando largas braçadas na direção do êxtase.

Por que escrevi esses dois paragrafos acima?

Para tentar explicar que, eu tive várias possibilidades de alfabetizar a minha mãe, contudo, estava demasiadamente fechado nas minhas próprias perspectivas, que não conseguia enxergar da forma clara essa situação, como a vejo hoje.

Me "consola" saber que, a maior parte dos filhos cometem o mesmo erro. Isso me anestesia um mínimo.

Eu amo ovo frito na banha de porco.

E localizei recentemente em minha história, onde se localiza essa memória afetiva.

A memória é mais a ingratidão, que a gratidão do coração. A mim, atormenta-me mais memórias ruins, que imploram para serem ressignificadas, que memórias ensolaradas.

Dentre elas, em uma manhã específica de céu claro, minha mãe fritou dois ovos e colocou ambos dentro de um pão, depois dentro de uma lancheira que ganháramos do Lar onde ficávamos, enquanto ela trabalhava das dez da manhã, até às dez horas da noite, voltando depois na noite escura, devassando sozinha (com medo) a escuridão daquele tempo, sem postes de luz nas ruas, sem asfalto.

Eu perguntei à ela:

Mãe, a senhora não vai fritar também para a senhora almoçar?

Ela fritava para nós todos de uma só vez.

Nesse dia ela disse:

Não, para mim farei depois.

Lembro-me de caminharmos pela rua, até passarmos por um amontoado de tijolos, quando ela subitamente se voltou e disse:

Esperem aqui, já volto.

E foi-se, passando pela alta pilha de tijolos, desaparecendo atrás deles.

Ficamos eu e o meu irmão à espera.

Até que em dado momento, a ansiedade me fez ir atrás dela.

Ela estava atrás da pilha de tijolos......comendo um deles.

Perguntei:

O que é isso, mãe?

Ela disse:

Nada, não.

Nos pegou pelo braço e nos levou para o Lar Bibi Monteiro.

Minha mãe vivia no triângulo amoroso da fome, da preocupação com os filhos e do trabalho.

E não era apenas fome de comida.

Nunca conheci nenhuma pessoa mais desprotegida.

BARTHES
Enviado por BARTHES em 14/12/2020
Código do texto: T7135504
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