LUGAR (IN)COMUM DA DOCÊNCIA NA PANDEMIA

Profissionalmente, nós da velha-guarda recebemos formação presencial para ser professor ou professora entre quatro paredes, estabelecendo contato corpo-visual com nossas turmas. Não fomos submetidos a uma formação para educação a distância nem fizemos curso para youtubers, blogueiros ou blogueiras, menos ainda para influenciadores digitais, com seus milhões de séquitos, para além do entorno material da escola ou da universidade. Isso, apesar de muitos de nós termos logrado alcançar, dado o prazo de validade da existência de cada um, a época da explosão de uma cultura digital tão intensa, na qual pipocam plataformas com N possibilidades de interação virtual, muitas das quais se erguem como o palco primordial para assombrosos devaneios do homem contemporâneo ou como o estupendo divã mais democrático e público que já se viu, para exposição e análise das neuroses e tragédias humanas. Nelas, todo mundo pode ser, concomitantemente, paciente e “experiente” psicólogo ou psicanalista. A carência de cada um, que da rede participa (ou que dela pode participar, pois ainda há muitos excluídos, haja vista a desigualdade social), é manifesta de diversas formas, sendo este então um laboratório singular e uma arena de vozes de dar inveja aos antigos gregos, que se orgulhavam de suas praças, nas quais o debate público vicejava, porém, obviamente, apenas entre os que tinham direito à voz, e se tivessem o que dizer, burilando a lucidez de suas proposições, refinando e afiando seus argumentos.

A rede tem bastantes vantagens, mas também vários perigos, já que, entre outros riscos, muitos cães raivosos (pessoas continuamente iradas como se tivessem sido concebidas no ódio e somente nele alimentadas), sem empatia alguma pelo próximo, sem conquistar espaço em uma empresa pública (concessão) de jornalismo, que forçosamente monitora mais e é instada a inibir, por parte de seus funcionários ou colaboradores, posicionamentos antidemocráticos ou ilegais (racismos, misoginias e outros preconceitos), sentem-se autorizados a fazer a cabeça de quem lhes dá trela inocentemente, ou mesmo de quem por decisão própria ouve/segue tais locutores/apresentadores por mera identificação com o ódio que destilam. Ganham visibilidade e muito ajudam a apodrecer o tecido social, em relação ao respeito ao próximo, à solidariedade, à compaixão pela dor alheia ou a alguma ética que valorize o que há de positivo e de mais humano nos cidadãos.

Voltando ao drama particular de nós professores, com a pandemia de 2020, fomos repentinamente sequestrados de nosso natural habitat e postos em jaulas cibernéticas para que, nos virando nos trinta, déssemos conta de nos familiarizar com o novo modo de praticar nossas aulas. Nosso cérebro é genial, mas, em algumas circunstâncias, pode ser bem lento ou distraído para certas aprendizagens, para reconfigurações interativas.

Na graduação e em tempos pandêmicos, diante do computador, em muitos momentos usamos slides (o que nos impede de ver outra coisa que não as imagens projetadas) para a socialização teórica (ou mesmo para exemplificar a relação entre teoria e prática), mas, sobretudo, para “prender” a atenção dos estudantes do outro lado na vida cibernética _ e sabe Deus de que lado estão de fato, visto que, presencialmente, nos iludimos com a ideia de que podemos melhor avaliar a atenção através da participação, dos comentários, mais ainda e sutilmente, seja entre os que pedem (ou tomam) a palavra (os que mais participam), seja entre os mais tímidos (caladinhos), através da dinâmica corporal, do olhar de cada um, enfim...

Nessas condições, cujos microfones e câmeras devem estar desligados a fim de otimizar o sistema, evitando travas na plataforma, devagar o cérebro vai tomando ciência de que não podemos visualizar ninguém, não podemos “controlar” a atenção de ninguém, pois, do outro lado, podem, se em casa, estar deitados no sofá assistindo TV, na cozinha preparando um lanche, na janela apreciando o movimento da rua, ou seja, “curtindo a vida numa boa”. Temos às vezes essa impressão porque, em geral, parece levar uma eternidade para responderem as provocações, como se tivessem que, antes, nadar um Atlântico inteirinho para se aproximar do aparelho e habilitar o microfone. Todavia, sejamos justos, podem também estar respondendo automaticamente, esquecendo-se então de que estamos interagindo de outro modo e em outra frequência: quantas vezes, em lives, falamos com o palestrante ou com o mediador sem habilitar primeiro o mecanismo de voz?

Ora esquecendo, ora percebendo isso, e não conhecendo os estudantes, já que era turma nova e só tivemos dois encontros presenciais antes do isolamento, escolhi o representante da turma para fazer a mediação entre mim e os demais (aos quais interpelava somente pelo pronome indefinido “alguém”), decorando seu nome a fim de não me perder na administração (ou na tentativa) para manter (nessa nova modalidade de enfrentamento pedagógico) as aulas dialogadas: é que o cérebro, ah, o cérebro, o nosso cérebro... bem, o meu cérebro, especialmente no pós-covid19, teve a estrutura abalada, a qual, se for mole, ficou mais mole ainda, como se tivessem nele injetado uma boa dose de patetol. É, parece idiotice inaceitável, mas em alguma brecha infeccionada de minha rosada massa gelatinosa instalou-se a ideia de que o representante de turma tinha agora em mãos o poder que perdi nessa transferência dramática de espaço pedagógico.

Era minha extensão, na insistente percepção equivocada da qual meu cérebro, empacado, não desapegava: no isolamento, a tecnologia afetava apenas a mim, pois o representante de turma, estando na mesma sala virtual com os demais (eu cá e eles lá), estava investido do poder de observação e de controle (que perdi) sobre seus colegas _ Ops! Na esfera universitária, em especial, não se pode falar em controle e poder (reais ou fictícios) impunemente, já que, quanto mais os identificamos e os criticamos, mais os alimentamos em nós e nos outros, objetos de desejo para o bem, para o mal, para o hibridismo, para todas as nossas vontades e práticas complexas.

Balançada de meu transe educacional-filosófico, caí das nuvens digitais para os muros das interações acadêmicas corriqueiras, pela reclamação de um dos estudantes que, magoado, requereu (e com ameaças) “o direito” de ter seu nome também pronunciado durante as aulas na rede.