Meus mestres

Os passeios ciclísticos matinais me levam a pensar sobre os mais diversos temas. Às vezes até deixo de lado a playlist do Spotify para dar liberdade aos meus pensamentos. Os mais recentes devaneios foram sobre algumas pessoas que me ensinaram ao longo da vida, contribuindo pra que me tornasse o homem/profissional que me tornei.

É claro que a primeira figura que me veio à mente foi meu pai. Pelos padrões formais era analfabeto, já que não passou sequer um ano na escola. Aprendeu a ler quase que sozinho, por pura curiosidade. Qualquer jornal velho que lhe caia às mãos, acabava por se tornar um excelente material didático. Já na leitura do mundo, no sentido Freireano, com certeza era um mestre. As grandes lições sobre relacionamento humano aprendi com ele. E bem muito antes do documento da Unesco - Educação um tesouro a descobrir – sugerir, ele já edificava o pilar do Aprender a Viver Juntos. Mas, nessa minha galeria de mestres, costumo dizer que ele é hors concours.

Para a formação do educador muito contribuíram as lições da minha primeira professora, Eunice de Souza Oliveira. Nosso contato diário se prolongou por cinco anos, na Escola Alberto de Assis, periferia de Salvador. Com ela aprendi a ler e a escrever, verdadeiramente. Infelizmente, apesar das aulas de caligrafia, não consegui “herdar” dela a bela letra cursiva que ainda hoje trago na memória. Tento, mas não consigo me livrar dos “garranchos”, que às vezes nem eu mesmo consigo decifrar depois de escritos. Esse meu modo esquisito de escrever, levava meu pai a dizer, à sua maneira e em tom de brincadeira: “quanto mais você estuda, mais ‘analfabético’ fica.”

Mas, o que foi tanto assim que ela me ensinou, para que eu continue até hoje lembrando dela com tanto apreço? Quando iniciou com a minha turma, no primeiro ano, três anos depois ela completaria o seu tempo de aposentadoria. Ou seja, quando aqueles alunos estivessem na metade do percurso, ela deveria deixá-los. Mas logo ela anunciou: continuarei por mais dois anos – tempo em que concluiríamos o que à época, se chamava de quinto ano primário. Ela queria ter essa satisfação de estar saindo da sala de aula juntamente com os alunos que também deixariam aquela escola, para frequentar o curso ginasial. Confesso que na época não entendia bem esse desprendimento dela, mas de tanto ouvir esse comentário, acabei gravando. Anos depois, na prática, entendi o significado daquele gesto.

Com ela aprendi a gostar de ler, de cantar, de declamar. Eram atividades que desenvolvíamos com frequência, sob o seu olhar atento. Lembro ainda da primeira poesia que eu decorei, exatamente para lhe fazer uma homenagem no dia dos professores. Era um poema de Martins D’Alvarez, intitulado Anjo bom:

“Minha mestra mora aqui

dentro do meu coração.

Foi este anjo bom que, um dia,

vendo que eu nada sabia,

que tudo olhava e não via,

me conduziu pela mão.”

É claro que depois dela tive muitos outros mestres, que também merecem registro. Mas a base de tudo começou com ela. Gostar de ser professor, amar essa profissão, respeitar os alunos, foi o maior legado que ela poderia ter me deixado.

Fleal
Enviado por Fleal em 05/01/2021
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