Domingo em Lisboa

Era domingo em Lisboa e eu decidi-me por passear pela Baixa pombalina, aproveitando os resíduos de um verão que parece não querer deixar-nos. Era meio-dia e os cristãos ou devotos apenas domingueiros, esvaziavam, em enxame, a Igreja de São Domingos. Estaquei, por segundos, à entrada, ladeada, como já é hábito, pelos pedintes andrajosos e malcheirosos, fazendo alarde das chagas e distorções de corpos colados ao asfalto. A uns escassos metros, as goelas sôfregas de alguns eram apaziguadas pela doçura do licor de ginja, sorvido em pequenos golos, entre animada cavaqueira. E o sol a todos banhava, irrompendo, em faíscas reluzentes, de um azul parado, sem mancha.

Sentada entre solenes, esculpidas figuras bíblicas, embalada pelo sussurrar de vozes abafadas, o perfume de flores e incenso a misturar-se com o odor da chama das velas, ardendo em nome de súplicas, quedei-me, por alguns momentos, contemplativa e grata por estar numa cidade que posso chamar minha e onde me sinto e sou, como em nenhum outro lugar do mundo. Uma cidade bafejada por uma sorte ou destino que muitos refutam, à boa maneira lusa, em que o pessimismo e negativismo embargam a apreciação e o louvor do que temos, não só nesta cidade, como no país. Um país onde a mais acérrima guerra é a das palavras: essas que usamos para diminuir a pátria e, com ela, todos nós.

Este era mais um domingo que não me veria encurralada numa dessas jaulas de cimento, onde o consumismo nos arrasta e faz rebentar com os saldos das nossas contas bancárias ou ainda empenharmo-nos, ao fazer uso dos cartões de plástico cujo crédito nos é ofertado, com magnitude, sem mesmo o requisitarmos.

Como eu, havia muito poucos. Os meus companheiros veraneantes, nesta descoberta da cidade branca e luminosa, eram os turistas, aos molhos, de máquina fotográfica em punho, rótulos colados às roupas estivais, sapatos de ténis e shorts, fazendo grande alarido numa fonética gutural e melodiosa, tão parecida com a nossa. Foi assim que me vi, de repente, rodeada por esse magote gesticulador, tentando atravessar o Rossio. Eles seguiram, Rua Augusta abaixo, diligentemente focados nos movimentos e explicações da guia, sem quererem perder pitada de um manancial de onde jorrava a nossa História, capturando no digital os seus testemunhos vivos. Eu seguia a minha sede de sentir na carne e na alma a minha cidade a fervilhar, qual mosaico de muitas e singelas pinceladas, com o coração a pulsar de orgulho. Eram os meus olhos que captavam as imagens, continuamente permutando-se: uma estátua humana estoicamente enfrentava a canícula na sua impassibilidade apenas perturbada pela graciosa vénia com que presenteava os que faziam jus ao seu esforço criativo; um rapazinho a tocar acordeão, cantava em uníssono com o uivar hilariante do cão, seu companheiro; pelas mesas dos cafés, onde os menos incautos desafiavam as calorias nas lascivas trincadelas nos pastéis de nata, fresquinhos a estalar, os vendedores de óculos de sol faziam perder a paciência, no seu desmedido desvelo de oferta; uma família mais afoita escolhera passear-se de bicicleta, fazendo-me lembrar os holandeses; artistas ambulantes expunham, com brio, azulejos e quadros, onde a cidade era a vedeta.

Inebriada pelos cheiros, movimentos e cores, cheguei à Praça do Comércio, que eu prefiro chamar de Terreiro do Paço, sem com isso haver qualquer conotação de sentido monárquico ou nostálgico. Aí, onde os carros são excluídos aos domingos, numa tentativa, mal sucedida, de trazer os alfacinhas a um terreiro que deixou há muito de ser do paço para ser do povo, fui encontrar mais turistas, desta vez a provar os nossos vinhos. Ao aproximar-me, foi em inglês que o empregado se me dirigiu e eu fiz de conta que não o ouvi e continuei na minha deambulação, já que não era vinho que procurava mas sim água, para refrescar a minha garganta sedenta.

Se não fosse pelos carrinhos de castanhas assadas e algumas folhas amarelecidas nas pedras carcomidas dos passeios, dir-se-ia estarmos em pleno Verão.

Alguns, mais desportivos, jogavam ténis de mesa, debaixo das arcadas, onde uma vez, nos princípios do século passado, a populaça se aglomerou para derrubar a monarquia. Havia também livros, medalhas e moedas para os amantes da leitura e coleccionadores. Não devem ser muitos ou então poucos saberão desta iniciativa camarária. Também se pode dar o caso de preferirem os tais centros de consumo em massa, sem se darem conta de que estão a ficar debilitados de vitamina D. Mas para combaterem essa debilidade, lá estão as cápsulas que ingerirão, no comodismo e aconchego das seus casulos, refastelados no sofá, enquanto o mundo lhes chega, no premir dolente de um controle remoto.

Enquanto uns se decidiam por um gelado, outros não resistiam ao odor convidativo das castanhas quentinhas. Lado a lado, marcas de estações que já não são demarcadas.

Com o olhar perdido nas águas do Tejo, ali a dois passos, vislumbrei um cacilheiro, na travessia rotineira, unindo Lisboa à margem sul ou à outra banda como o povinho costuma dizer. E, antes de encetar o percurso de volta, inalei fundo, tonificada, num contínuo, mas sempre renovado sentimento por esta cidade que nunca deixará de me extasiar.