UM PEDAÇO DE BEIJU DE FARINHADA

UM PEDAÇO DE BEIJU DE FARINHADA

Manoel Belarmino

Uma farinhada no Boqueirão, no meu tempo de menino, demoravam, em média, cinco dias. Era uma semana inteira de farinhada. Só no Boqueirão existiam três casas de farinha. A casa de farinha de Tio Zeca Belo, a casa de farinha de Bié, a casa de farinha de João Cazeba e depois a casa de farinha de Seu Edigar. Ali havia farinhadas quase o ano inteiro. Quando uma terminava, começava a outra.

Os equipamentos das casas de farinha eram todos artesanais. Os fornos a lenha eram todos de tijolos e barro. A prênsão era toda de madeira de barauna madura feita pelas mãos dos mestres artesãos da marcenaria cabocla dos camponeses tradicionais. Eu ficava admirando aquele parafuso de Madeira enorme, bem talhado, no centro da prênsão. Uma verdadeira obra de arte dos grandes mestres daqueles tempos. O rodete também era todo feito de madeira, a roda, a bola e a mesa. Só os braços da grande roda e os dentes do rodete eram de ferro, mas também artesanal, feitos pelas mãos dos mestres ferreiros, e o reio era feito artesanalmente do couro cru. Artesanal também eram as urupembas, as gamelas, os cestos, os caçuás, as esteiras, as cuias, os cochos para a manipueira e os rodos.

Naquele tempo uma farinhada no Boqueirão era uma verdeira festa. O mutirão da raspa da mandioca, na noite de farinhada, era uma festa. Era uma animação só. As rodadas de beiju de fornada com café eram as delícias mais apreciadas.

E em todas as noites a animação se repetia. O mestre Tio Opino contava as mais belas histórias de princesas e reinos encantados; histórias que me faziam viajar em um mundo encantado da imaginação. O cansaço sumia e o sono não chegava.

Todas as noites ali estavam uns raspando mandioca, outros na roda do rodete, outro ralando a mandioca e o outro mexendo a fornada de farinha.

Outro momento bom era quando a massa da mandioca ia para as urupembas, para ser peneirada. A peneira da massa da mandioca sempre era feita pelas mocinhas e rapazes.

"Eu tava na peneira

Eu tava peneirando

Eu tava no namoro

Eu tava namorando".

Dois tipos de beiju eram feitos na farinhada: o mais delicioso era o beiju de fornada, assado sob a farinha,m; e o outro era o beijo de fim de fornada. Os beijus de tapioca eram uma verdadeira delícia.

Eu me lembro do meu tempo

De menino no sertão,

Nas festas de farinhadas

(Era grande a animação)

Sob as noites de luar

Do meu lindo Boqueirão.

Na raspa da mandioca

"Seu" Tio Opino conta história;

Vivência do nosso povo

De lutas, derrota, glória...

Não tá escrita nos livros,

Mas gravadas na memória.

Lá na prênsão, o Zezinho

Bota força pra prensar

A massa da mandioca

Pra farinha preparar.

Toma pinga, canta versos...

E piadas pra animar.

Na urupemba uma cabocla

Muito simples (mas tão bela!)

Peneirando a tapioca

(E eu não tiro os olhos dela).

Como é bom comer beiju

Feito por essa donzela!

No fim da farinhada, todos que ajudaram no mutirão da arranca da mandioca, da raspa ou de outro serviço voluntário e solidário, ou até mesmo remunerado, recebiam um beiju de tapioca, feito na última noite, depois da última fornada, como forma de gratidão pela colaboração na festa da farinhada.

Noa tempos atuais, infelizmente, não é mais assim. Com o avanço das tecnologias e desse modelo agrícola cruel e injusto, com as mudanças climaticas por causa do desmatamento e da perda de solos e das manivas crioulas, o Boqueirão e outras comunidades, como Cururipe, Areias, Serra da Guia, Serra Negra, e outras, não produzem mais a farinha de mandioca. As casas de farinha fecharam,  viraram escombros. Os agricultores tradicionais foram perdendo a cultura da produção diversificada de comida no campo.

Eu sonho, e ainda eu quero ver na prática, com uma Politica Municipal de Agricultura que recupere a cultura e os valores tradicionais dos camponeses na produção diversificada de alimentos. Ainda é possível construir politicas públicas de recuperação dos nossos solos, das sementes tradicionais, da cultura e dos valores do homem e da mulher do campo.

Ah como eu desejo hoje um pedaço de beiju de farinhada com café de caco!

Manoel Belarmino dos Santos
Enviado por Manoel Belarmino dos Santos em 15/01/2021
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