“Feche” os Olhos

Olhou metricamente para toda a sala, via as pessoas, a maioria sentada, umas de pé no fundo da sala, ninguém se atrevia a fazer um contato visual direto com ele, acatavam todas as suas falas. Horácio Vale começou a se irritar, sem um real motivo, olhou para o martelo em sua mão e agradeceu a Hefesto e a Thor por aquilo existir, nunca teve certeza da origem disso, olhou para os advogados a sua frente, colocou a mão no peito.

-Se eu jogar esse martelo neles? Depois é só ir dirigindo feito louco, chego à Brumadinho em meia hora, depois volto para Ibirité negando tudo, tomo no máximo uma advertência!

Aquele pensamento deu dor no estômago, mas não era só isso, estava muito difícil respirar, mal estar, e o pior dos sintomas, seu braço esquerdo parecia morto, até que o mundo congelou ao seu redor.

Nada daquilo dava medo a Horácio, ao contrário, quando tudo congelou, congelou também o que estava sentindo de ruim, seus sentidos pareciam de um super-humano. Duas características que sempre tivera ficaram muito fortes, sua memória olfativa e gustativa, nem lembrava que era tão bom nisso, só se deu conta quando aquelas fragrâncias invadiram o tribunal, e aquelas pessoas de “cera”, nada viam, nada sentiam. Dava literalmente para ver o cheiro no ar, frango com quiabo e ora-pro-nóbis passava a frente, dava para saber até o que aquele frango caipira tinha comido em vida, a boca encheu de água quando veio o cheiro do tutuzinho, tinha a consistência pastosa ideal. –Espera! Ai meu Deus! Leitão a pururuca, vaca atolada, ai já é covardia! Tudo foi, lentamente, se fragmentando até culminar no fechamento volátil e perfeito do “som” de um maravilhoso café e de um caminhão de pão de queijo!

Uma criança se levanta no meio de todos, sua atenção foi, como uma flecha, direcionada a ela, ficou um pouco bravo pensando quem havia permitido a entrada de daquela menina no tribunal.

-Oi! Sou Aparecida, mas pode me chamar de Cida! A criança falava dentro de sua mente, mas é o cúmulo, por favor, não invada a minha cabeça, pediu Horácio, sem nem estranhar o que estava acontecendo. Cida sorriu, disse um ok! Mas foi um “ok!” Tão cândido e confortador, dessa vez usando os lábios, que tudo sumiu, até a sala sumiu, mesmo o Horácio adulto havia sumido, nesse momento, eram duas crianças brincando de pular corda, em um terreno descampado ao lado da casa em que fora criado. Cida pulava feliz junto com ele, ela era muito boa nisso, cantava gritando e rindo para fazê-lo errar.

-A canoa virou, Horácio que deixou ela virar, foi por causa da namoradinha que não soube remar, eu não sou uma peixinha, mas eu sei como nadar, vim aqui só pra tirar você do fundo desse “mar”!

Sentados, rindo muito de tudo, ele perguntou o que estava acontecendo. –Não se preocupe com nada, apenas aproveite e sinta novamente o cheiro das comidas vindo da casa da sua vó, hoje é dia de Nossa Senhora das Graças, dia de festa, dizia a menina com aquele sorriso que derrubava qualquer argumento!

Vó Marta adorava enfeitar a casa de azul, dizia que combinava com a paróquia e também era a cor de Nossa Senhora! Colocava duas mesas, uma para as crianças e outra para os adultos, eu não me sentia excluído, nada disso, dava mais liberdade na hora da comida, mesmo com os adultos sempre de olho em nós, todos se revezavam em dizer que precisávamos respeitar o alimento. –Comida não é brinquedo! Gritavam. Já de bucho cheio, todos íamos para a varanda “descansar” o almoço, era um momento muito “perigoso” nada de banho, nada de correr, a hora pós-almoço era para bravos!

Senti minha amiga pegando suavemente a minha mão, disse que precisávamos ir, eu não me preocupava com mais nada, copiei o seu sorriso consolador e fechei os olhos sabendo que só assim eles seriam verdadeiramente abertos!

Sérgio Souza

“Há no céu e na terra, Horácio, bem mais coisas do que sonhou jamais vossa vã filosofia”. William Shakespeare em Hamlet.

Sérgio Souza
Enviado por Sérgio Souza em 17/01/2021
Código do texto: T7161961
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