BEIJURAS E ENTRE-FOLHAS.

Pássaro passando entre folhas ao meio-dia do dia 2 de janeiro.

Ninguém ouviu o pingar na pia.

Isabela comprou folhas.

Policarpo destruiu flores.

Um ônibus -linha 1980 VL Gumercindo - na Avenida Tulipan tombou.

Oito morreram.

Três foram fruto de desova.

A manga estava cara demais.

Amanda respirou por tubos pela última vez.

Alguém lavava a calçada com a água da mangueira.

Hoje seria o primeiro da Duda.

Ás 15:23min., Julia olhou para o relógio de pulso e declarou: "Ele não vem".

Os restos da manga caída no chão, serviu de alimento para o pássaro entre folhas naquela tarde.

Isadora lavava as frutas da feira e recontava as mangas. Tinha certeza de que havia comprado três e não apenas uma. Isa deixou a torneira pingando ao receber por telefone a notícia de que Lisandra, sua filha, havia morrido num acidente de ônibus, minutos antes.

Isabela acabava de sair da papelaria em direção ao hospital do centro. Comprara uma resma de sulfite tipo "A4". No caminho, escreveu recados de boas-vindas para Amanda, a irmã. Amanda, envolvida no tombamento de um ônibus meses antes, finalmente teria alta, após respirar por aparelhos.

Policarpo, sentiu o peito praticamente explodir em fúria e euforia. Observava de longe o que jurava ser posse sua. Estava em pé atrás de um poste na esquina e segurava flores. O seu namorado recebia beijos apaixonados de outra pessoa. Pouco sentiu de amor ao esmagar as flores nas mãos. Beijo, flores, juras, primeiro encontro, planos, beijo, flores, primeiros planos, florimeiro, enconbeijuras, floreijos, visão turva, beijo, floresplanosbeijosjurasprimeirosbeijosvisãoturvaporquebeijosfloresbeijosplanosjurasprimeirosturvabeijofloresplanosbeijosjurasprimeirosseraqueejustobeijosvisãoturvaporquebeijosfloresbeijosplanosjurasprimeirosturvabeijofloresplanosbeijosjurasprimeirosbeijosvisãoturvaporquebeijosfloresbeijosplanosjurasprimeirosturvaeraaminhavidabeijofloresplanoseunaosouosuficientebeijosjurasprimeirosbeijosvisãoturvaporquebeijosfloresbeijosplanosjurasprimeirosturvabeijofloresplanosbeijosjurasprimeirosbeijosvisãoturvaporquebeijosfloresbeijosplanosjurasprimeirosturvabeijoESCURIDÃO!

Um ônibus tombou na avenida Tulipan. A última vítima a ser retirada do local, não sabiam bem o porquê, mas segurava restos de flores nas mãos.

A única função de Latinha e Cóca, era a de sumir com os corpos daqueles que desafiavam a chefe. Naquela tarde eram apenas três. Ouviam Agepê no caminho para o aterro de costume desova. Nada além de um ônibus á frente.

- Me leva, ó vento me leva pra...

BAM!

Latinha conseguiu parar o carro em tempo. Não pensou muito. Viu os corpos agonizados espalhados ao redor do coletivo já tombado e tomado por chamas. Jogaram os três corpos sobre outros dois ainda vivos do ônibus e resolveram acelerar o processo de explosão do ônibus, mesmo que o isqueiro teimasse em não acender. Ninguém os viu sumir pela esquina pouco antes da explosão tomar em chamas as árvores e fios próximos.

Seo Adelino caminhava, como sempre o fazia diariamente pela praça e agradecia por mais um dia de vida. Era observado de longe por um azulão de penas brilhantes. Caminhava sem pressa olhando para o céu e observando o pássaro de metal atravessando entre as nuvens e dizia para si: "Vão com Deus". Num tropeço repentino, escorou-se numa das árvores procurando, primeiramente o motivo de tal distração. Já havia sumido entre as nuvens de dia aberto. Procurou então o motivo do tropeço e viu. Duas mangas. Belíssimas, vermelhas, coradinhas. Ergueu as duas rente aos olhos cerrados. Apalpou. Apertou. Numa delas havia um rombo e algumas formigas sobre. Efeito da queda pensou. Adelino lembrou que o preço da manga estava cada vez mais caro e que talvez não precisasse de duas mangas, mas que o suco de uma delas cairia muito bem naquele dia de sol. Jogou a manga arrombada de volta na praça e seguiu o rumo sem ver as asas abertas pousando logo atrás. O pássaro agradeceu olhando de lado para Seo Adelino e bicando com fúria e sede a fruta.

Era sempre assim. Todos os Sábados. La vinha Dona Mirna. Com cara de brava e punhos na cintura. Reclamava. Sempre e sobre a mesma coisa.

- Mas que caralh@#%*!$%?

Ela olhava a calçada dos vizinhos e só o que via era o reflexo do sol. Na calçada dela, era de lei estar com restos de legumes, frutas, pastel, copo plástico e até peixe. Aparentemente, foi a calçada eleita pelos demais moradores do bairro como o melhor local de descarte da feira. Vez ou outra ela não reclamava tanto, pois muitas pessoas não viam quando sem querer, deixavam algo cair do carrinho de feira, em sua maioria, frutas, como banana, laranja e manga. Flogging Molly, a poodle de estimação era a administradora e assim que via algum comestível cair de um carrinho, lá ia ela latindo para dentro e só voltava com a dona, como sempre, enfurecida. La ia Dona Mirna lavar a calçada com mangueira. Os vizinhos, porém, já haviam percebido que toda aquela fúria era um disfarce para que ela pegasse os comestíveis esquecidos na sua calçada, sem parecer uma esfomeada. Ela nunca soube, mas ás vezes, eram os próprios vizinhos que jogavam os comestíveis lá, só para observar. Flogging Molly, se sentiu confusa quando esperou a dona chegar de uma consulta para apontar as frutas jogadas na calçada. Dona Mirna nunca voltou. Na penteadeira um bilhete com um trajeto: Ônibus VL Gumercindo linha 1980.

Ás 15:23min., Júlia olhou pro relógio de pulso e declarou: "Ele não vem".

Esperava desde as 13:00min. Era uma biblioteca pública e nem havia tanta gente assim. Júlia esperava por Duda, um rapaz com quem conversava há alguns meses por um app de encontros. Um rapaz gordo, de traços latinos, de cabelo volumoso, porém curto, alargadores nas orelhas e que em todas as fotos estava com camiseta de banda. No longo período em que esperava por Duda, observou atenta cada uma das pessoas que iam e vinham. Observou também que precisava urgente passar num oftalmo. Já não exergava rostos com tanta clareza como nos seus 18 anos. Não via muito bem a expressão facial de ninguém, mas percebeu a silhueta das muitas pessoas correndo numa direção e tentou ver do que se trava ainda sentada num pufe. A curiosidade foi maior e antes que pudesse dar um segundo passo, foi abordada por uma nova silhueta.

- Oi. – Disse a silhueta.

Houve silêncio.

- Sim? – Júlia questionou observando aquela silhueta de alguém mais magra e alta do que ela. Conseguiu distinguir que na cabeça haviam cores, parecia ser um lenço e a pele era branca. Desceu o olhar tentando identificar alguma estampa e viu o que parecia ser um tobogã vermelho.

- Eu preciso ir ao banheiro, onde fica? – Perguntou a silhueta de voz calma e feminina que parecia sorrir.

Júlia apontou a direção onde se lia “BANHEIRO” bem grande sobre a porta e saiu andando em direção à muvuca que ainda se formava ao redor de uma televisão da biblioteca. Um link ao vivo, mostrava um ônibus em chamas e com possíveis vítimas.

"Era isso..." – Pensou Júlia. O seu primeiro encontro depois de anos, foi frustrado por conta de um acidente. Duda, o pretendente, possivelmente era uma das vítimas. Já em casa, sentou na cama, buscou o nome das vítimas e nenhuma parecia ter a possibilidade de ter DUDA como abreviação ou apelido. Júlia mordeu o pedaço de bolo e pensou na ironia. Que belo dia para mais um bolo.

PS: Eduarda esperou na porta de casa o Uber e no trajeto leu na folha mais uma vez. Talvez para se sentir mais confiante.

“CANCER EM REMISSÃO”.

Era a primeira vez em que saía sozinha e o primeiro encontro que marcava com alguém. Nunca expôs a situação médica nos aplicativo de encontros e usava fotos antigas de si. Não estava mentindo. Era ela ali, mas física e mentalmente diferente. Não usava o nome real. Aliás, quem usa? Usava o apelido de infância: Duda

Reconheceu Júlia de longe e mesmo que sentisse os joelhos tremendo se aproximou e viu que Júlia também se levantou. Júlia lhe parecia mais bonita pessoalmente, mas um tanto julgadora. Júlia tinha um olhar de indiferença e parecia julgar cada traço de Duda, da cabeça aos pés. Duda resolveu arriscar a primeira palavra.

- Oi. – Disse Duda.

Houve silêncio.

- Sim? – Júlia questionou ainda com olhos cerrados e olhar de julgamento.

- Eu preciso ir ao banheiro, onde fica? – Duda perguntou sorrindo para tentar quebrar o gelo. Júlia apontou a direção onde se lia “BANHEIRO” bem grande sobre a porta e virou as costas. Duda a viu caminhar e sumir entre uma muvuca de gente. Duda não foi ao banheiro. Desceu um lance de escadas e enquanto esperava o Uber de volta para casa, apagou o perfil no aplicativo.

PS2: Dois meses depois, Júlia que havia contado a uma amiga sobre o date furado, recebeu da mesma uma dica de podcast. Ao ouvir, um podcast de um casal sobre histórias aleatórias que os ouvintes enviavam enquanto limpava as lentes dos óculos, percebeu a familiaridade da história contada, local, dia e horário em que havia estado e onde pensou ter levado o maior bolo. E ao lembrar sorriu. E ao lembrar chorou. E ao...

COMEÇO.

(Porque nem tudo precisa ter fim, só não precisa ser dito).

Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 18/01/2021
Reeditado em 03/08/2022
Código do texto: T7162651
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