FLORZINHA

Florzinha

Noite! Tempo predileto para divagação. Espreguiçava o corpo moído pelo cansaço do dia. O mundo cabia no espaço do seu quarto. Os sons, ruídos longínquos quebravam o silêncio da noite. Passos apressados. Portas fechando. Apito do guarda noturno. Gargalhadas na calçada e muita algazarra de jovens transeuntes vindos das baladas da noite juvenil. Clarisse gostava de ouvi-los. Recordava-se das noites voltando dos clubes, das conversas nas madrugadas sobre as conquistas, os beijos roubados, a dança e seus ritmos.

O sono espaçava. Não tinha o privilégio de dormir “feito uma pedra” ao se deitar. Lástima. Fardo carregado há anos, mas a ajudara a escrever suas estórias. Clarice expressava por ela: “Mas... Quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, resisto à desorientação”.

Abriu a caixa. Viu a flor murcha guardada dentro de um livro. Lembrou-se de Florzinha, a menina da travessa São João e riu. Era uma comédia. Florzinha, como todos a chamavam, adorava passear de carro. Todas as tardes, espreitava uma carona. Faceira, como sempre bem adornada, pedia aos amigos para “dar uma volta”, por aí, dizia. Era filha do jardineiro da casa de Clarisse, seu Tonhão, apelido que ganhara de seu pai. Tonhão era um homem forte, corpulento, porém terno em seu trato com as plantas, as quais floresciam viçosas em suas mágicas mãos. Liberal, não se importava com as saídas de Florzinha e gostava de seu jeitinho alegre.

Pediu à D. Lívia para levá-la ao circo Titanic, a nova atração na cidade de Laranjeiras. Um sucesso. D. Lívia era uma senhora reservada, mas sempre, convidava Florzinha para fazer-lhe companhia em seus passeios vespertinos.

O Circo Titanic, cheio de inovações, atraía os moradores com suas fontes luminosas, palhaços, equilibristas afamados e shows variados. Era um acontecimento na cidade. Compraram os ingressos das poltronas principais. E D. Lívia assistia ao espetáculo, bem acomodada, em frente ao picadeiro. Acometida por uma enfermidade, aos 10 anos de idade, enxergava com dificuldades. Daí a necessidade de estar nas primeiras filas.

No espetáculo circense, as duas riam muito, soltavam gostosas gargalhadas. Banquetearam-se de guloseimas: algodão doce, pipoca, bombons, pirulitos coloridos etc. Tudo vendido dentro do circo, nos intervalos, pois quando as luzes se apagavam, e acendiam os holofotes para o centro do picadeiro, o reluzente era o show apresentado.

Várias apresentações: malabarismo, contorcionismo. Palhaços e suas piadas, apitos estridentes, mágicos, danças etc. Encenações com animais pequenos, dentre os quais, os macacos treinados dançavam vestidos com roupas coloridas, gritando, subindo em postes fixados no picadeiro.

De repente, Florzinha aproximou-se dos animais. Levantando-se de sua poltrona, D. Lívia reclamou:

- Saia daí Florzinha. É perigoso brincar com animais. Não chegue tão perto.

Não houve tempo. A macaquinha pulou nos braços de Florzinha e começou a pular sorrindo. No primeiro instante, Florzinha gostou e fez graças. De repente, a macaquinha agarrou-se ao seu pescoço. Assustada, a menina pediu socorro! O pessoal do circo tentou tirar a macaca Nina dos braços da garota. Coisa nenhuma. Agarrada ao pescoço de Florzinha, Nina não se desgrudava. Desesperada, gritava por D. Lívia, esta perturbada, não sabia como proceder diante do fato. Ora ria, ora gritava, pedindo auxílio. A macaquinha não largava Florzinha que andando de um lado para outro, pedia ajuda a quem estivesse por perto. Florzinha parecia tresloucada. Foi um alarido. O dono do circo, o domador de leões, os palhaços tentaram, e Nina não cedia aos apelos.

No desespero, surge o bom senso, o curioso fato. Florzinha resolveu calar-se. Ficou quieta, e um silêncio pairou no circo. Espetáculo empacado, plateia emudecida, e Nina agarrada na menina. Florzinha, ao recuperar a calma, relaxou e começou a acariciar a macaquinha, beijando-a e fazendo gracinhas. Pois, assim, Nina cedeu. Deu uma cambalhota e saiu aos pulos de regozijo. Êxtase da plateia, risos e aplausos. Pasmas, entenderam! O público apreciara o fato, como um show, parte do espetáculo. Aclamações hilariantes. Ficaram famosas. Os espectadores não cansavam de aplaudir. Satisfeitos com o desfecho, o grupo circense ofereceu sorvete, pipoca, gracejos, como brinde, face ao sucesso da dupla.

Ao final, os donos do circo ainda entregaram um buquê de rosas, como agradecimento, por concordarem em não desmentir o ocorrido, passando a ser visto como parte do espetáculo circense.

Ao chegarem à casa, as gargalhadas, contaram o ocorrido aos vizinhos e amigos. Essa história correu solta. Florzinha deu a Clarisse uma rosa como lembrança, e ela a guardara. Ao completar vinte anos, foi embora, casando-se com um artista de circo.

Clarisse deitou-se e, nessa noite, sonhou colorido.

Regina Barros Leal
Enviado por Regina Barros Leal em 18/01/2021
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