Visitando a crônica esportiva de Nelson Rodrigues

Leio — cheio de agrado que compartilhei com amigos pelo zap — esta delícia que são as crônicas de “A pátria de chuteiras”, do espetacular, genial, divino, semidivino Nelson Rodrigues.

O livro está aí, integralmente disponível na internet para quem quiser reviver momentos de ouro do nosso futebol, no texto de um cronista para quem o jogo, a partida em si, era mais um detalhe para falar de nosso jeito brasileiro de ser, nossos defeitos, nossos complexos – nosso complexo de vira-latas. Não esperem que o Nelson descreva e comente em detalhes o esquema de algum jogo...

Nelson faz uma teatralização do espetáculo, dando vida literária aos atores envolvidos na peleja, não privando seu leitor de referências mitológicas, comparações de beleza estética, ditos populares e análise da psicologia do brasileiro. Tudo isso, motivado por uma partida de futebol, um espetáculo de vida! Sem falar no estilo... Leve, límpido, fluido. Uma delícia, repito.

Nosso complexo de vira-latas (somos perdedores!) desencadeou-se após a derrota para o Uruguai, na Copa de 50, e foi mandado às favas com as vitórias na Suécia, em 58, e, no Chile, em 62, quando o mundo, por duas vezes seguidas, se curvou aos heróis brasileiros. Dizia o Nelson: “Eis a caridade que nos faz o escrete: — dá ao roto, ao esfarrapado uma sensação de onipotência. Em 58, quando acabou o jogo Brasil x Suécia, cada brasileiro sentiu-se compensado, desagravado de velhas fomes e santas humilhações. Na rua, a cara dos que passavam parecia dizer: — ‘Eu não sou vira-latas!’ Em 62, a mesma coisa. De repente, sentimos que o brasileiro deixava de ser um vira-latas entre os homens e o Brasil um vira-latas entre as nações”.

Em 66, nosso desastre! Eu me lembro, era criança e ouvia pelas ondas chiadas do rádio. A crítica enxergou na Inglaterra a vitória de um futebol moderno, racional. Uma crítica, que encarnava o complexo de vira-latas. Nelson, contrariando Deus e o mundo, esbravejou que fomos roubados e não poupou os nossos cronistas de futebol. O que aprendemos com os ingleses foi “ganhar no apito. E, realmente, fomos caçados com a conivência deslavada dos juízes, dos juízes que a Inglaterra manipulava. Aí está o Canal 100. É o cinema, com uma ampliação miguelangesca, mostrando o nosso massacre. Nada descreve e nada se compara ao cinismo com que se exterminou Pelé. Tal cinismo foi, talvez, a maior lição que recebemos da Copa”.

Em 70, a seleção maravilhosa, que conquistou o mundo, saiu daqui desacreditada, e Nelson dizia que o escrete, partindo para México, deixou o exílio – tamanha era a baixa autoestima embutida pela crítica nos craques nacionais: o tal complexo de vira-latas. Para os entendidos pessimistas, Nelson tem a dizer algo cheio de contundente ironia: “o ‘entendido’ só não se torna abominável porque o ridículo o salva”.

O que dizer de Garrincha, o gênio das pernas tortas? Curtam Nelson Rodrigues: “Enquanto os outros se atrapalham e se confundem de tanto pensar, Garrincha age com rapidez instintiva e incontrolável. Foi assim na Suécia. Ninguém pensa mais do que o europeu. Mas enquanto o sueco, o francês ou o galês pensavam no que faria “seu” Mané, já o brasileiro se tinha disparado como um tiro, já invadira a área inimiga, com uma velocidade superior à do som, da luz. Viu-se, então, que o raciocínio é uma draga, uma carroça diante da agilidade vertiginosa do instinto”.

O que dizer de Pelé? De novo, com a palavra o Nelson: “Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: — “Como vai, colega?”.

Em várias passagens, ele fala desse borbulhar dos gênios, que os diferencia, que os faz únicos, que os torna artistas. Um time de futebol – um verdadeiro time de futebol – há de ter o astro, um atleta luminoso, a pairar sobre os outros, iluminando, irradiando, roubando a cena. Um time de futebol não são onze soldados de chumbo, iguais, repetindo jogadas iguais.

Hora de terminar essa viagem em que mais passei a palavra!... Li as crônicas, fascinei-me com o estilo, a magia do texto rodriguiano – certamente algo diferenciado até hoje no repertório de nossa crônica esportiva. Fica a sugestão de leitura, sobretudo aos mais jovens, que, na seleção de obras a serem saboreadas, costumam ser receptivos a certos convites.