ESCREVA! Deixe o Show começar

Montados em dromedários, melhor seria se fossem asnos adestrados, partimos de Marrakech para experimentar o nomadismo. Quando tentávamos acelerar o ritmo os animais se mostravam com tendências vingativas e nos chacoalhavam até mudarmos de ideia. Aí, tudo voltava ao lento passeio, alargando a ansiedade da chegada. Aos pés, o chão ardente e, acima do turbante, a causticante esfera de fogo. Antes, cobrimos de automotor a distância entre Tanger, lá no Estreito de Gibraltar – onde o Mediterrâneo beija o Atlântico – até a “cidade vermelha”, como é julgada aquela urbe dada à cor dominante de suas construções. No deserto o vento durante o dia é tão quente que dói quando toca a pele, por isso, vestíamos trajes habituais dos beduínos, a veste de cor clara e larga que abriga e permite afrescar o corpo, a qual os marroquinos titulam de djellabia. A maratona inicial nos deixou calhados aos limites que as temperaturas acima dos quarenta graus Celsius nos impõem. Caminho longo, quase seiscentos quilômetros. No itinerário, saindo de Tanger, destacamos Fez, Meknès e Casablanca, assim rematando com Marrakech o ciclo das cidades imperiais do Marrocos, dentre as outras que nos deram as caras.

Ainda no arrebol do amanhecer, pegamos as gangorras, ou melhor, os dromedários, e saímos da ryad, avistando pela última vez a praça Jemma-el-Fna com seus encantadores de serpentes. Deixando as muralhas vermelho alaranjadas que fortificam a Almedina e o mirante da Kutubiya para trás, avançamos ao largo da Cordilheira do Atlas. Por detrás daquelas montanhas, o desafiador Sahara. À frente, só a imensidão de areia, que conspira contra a paciência e a resistência humana e servem de descanso para a víbora que, para fugir do calor mortificador, passa o dia sob a terra.

Na caravana, havia um nativo da região, certo ancião chamado Moahamed – transliteração arábica de Maomé, o profeta do Islamismo – religião da qual ele era adepto. Tornamo-nos bons conviventes de jornada, apesar de sua criação selvagem. Ele mais parecia Zaratustra, profeta que foi colocado na fogueira e nada sofreu. Isso dado ao uso de longa barba e a tranquilidade que o ancião demonstrava mesmo diante do insuportável calor, que mais parecia brasa de fogueira. Encantava-nos com suas narrativas lendárias, às vezes enigmáticas, segundo ele, vividas em isolamento nas montanhas. Era admirável o seu modo de sempre vir em nossa direção com as mãos estendidas em afetuosa saudação. Ele parecia ser leve, mesmo em suas pesadas roupagens azuis celestes. Talvez imitação pura de Maomé, para os fiéis islamitas, o mais perfeito dos seres humanos. De tão boa a sua companhia, fez-nos esquecer os atos torturantes dos vingativos dromedários.

Eis o sentido de nossa viagem àquele país africano: ver com novos olhos, buscando reflexos perdidos de nossa civilização, nunca antes por nós enxergados. Naquela eremitagem – onde paradoxalmente nos instruímos em muitos fatos – aprendemos com nosso companheiro, meditativos, o axioma árabe que exprime norma de conduta quase inquebrantável e duradoura:

– Uma vez solta uma palavra, nem mesmo um cavalo a galope poderá alcançá-la. Assim nos falou aquele idoso, sacudindo a cabeça, sem retirar os olhos dos nossos, enquanto tomava uma de nossas mãos, como a determinar domínio sobre a situação.

Ou seja, por ser solta ao mundo – segundo a tradição abraâmica – qualquer expressão transbordada da boca, jamais retornará ao dono. De toda a sorte, com base bíblica e pureza no coração, tentamos persuadir o ancião muçulmano. Dissemos, com dignidade e segurança, que havia sim uma palavra que pode ser alcançada, mas ele não aceitou a altercação. Ficou a nos encarar com olhar de refugiado ameaçado de não encontrar abrigo.

Porém, para nós cristãos, a “Palavra da Vida”, que é o “Verbo” (do grego logos, que significa “palavra”), depois de manifestada, anunciada, voltou ao dono (o Criador), quando “a palavra se fez carne, e habitou entre nós” – encarnação divina – (Jo 1,1-14) e retornou aos céus onde “está sentado à direita de Deus Pai” – ascensão de Jesus Cristo – (Mc 16,19; Lc 24,50s; Ef 1,19s; Pd 3,22).

De nada adiantaram nossos esforços. Então, naquele crepúsculo, olhando o deserto que ia escurecendo, cada um, de modo confortável, ficou com a sua verdade. Prosseguimos a marcha em silenciosa peregrinação e paz. Se fez noite. Apenas um vento frio, imenso, saído das sombras, sacudindo nossas vestes, algumas lanternas e tochas, e mais nada, resta-nos recordado daquela noite no deserto.

Em Istambul, na Turquia, ouvimos outra vez o ditado, isso a cinco mil quilômetros de distância de Marrakech. Foi na mesquita do Sultão Ahmed, a Mesquita Azul, assim conhecida por conta da exuberância dos mosaicos azulados. Ouvimo-lo dito por islamitas. Resguardados, eles cismavam ao nos dirigir qualquer palavra. Talvez com receio de amplificar entre nós as desuniões culturais e religiosas que nos separam em abismo intransponível. Somos, nesse aspecto, tão desiguais como tudo que há no Grand Bazar. Discutir não era adequado, havia nos avisado o guia. Nossas diferenças seguirão por toda eternidade.

Pois bem, tolerando as questões religiosas e olhando por outro ângulo, temos que, quando um termo se expande da alma, atravessa a mente e se prende ao branco do papel, substancialmente o escritor dá materialismo à sua missão. Mas, é também a hora de ser cuidadoso, pois o seu conceito, que não passa de um punhado de segredos ditos letra a letra até formar uma sequência inteligível – passível de se tornar realidade assim que manifestado – ganha o mundo e pode fazer sorrir ou chorar.

A tese dos árabes, arraigada a raízes incontestes de que não se pode alcançar uma palavra solta, é cotejável ao fruto que se desata da macieira ou ao condenado que passa pelo portão por cima do fosso e se liberta da prisão à vista de todos. Antes da viagem, pois, por água ou pelo ar, a palavra deve ser vigiada. Pensada. Avaliada.

A palavra solta se consume por completo. Forme ela axioma, provérbio, sentença, adágio etc., a cada segundo, a cada momento, multidões de recrutas vêm do limiar do desconhecido carrega-a, propaga-a e faz de tudo para ela não voltar à origem. Uma clara tentativa de não permitir o seu esquecimento. Por isso, o possível impacto negativo da expressão prestes a ser liberada deve ser bem analisado, evitando-se a possibilidade de danos.

De tudo o quanto temos lido algo especial nos chama atenção: os textos. Sim, todo e qualquer texto, desde a forma mais burlesca de historiar até a máxima mais sábia, dele se apoderam os que possuem sabedoria como Salomão, bem como a massa popular, sem propriedades intelectuais. Daí, rematamos: seja sensato, prudente, busque conhecimentos, sem precisar ser erudito ou emérito e liberte a palavra presa à alma, dando-lhe vida exterior sem se importar se já foi dita ou escrita – parece que todas já o foram – apenas ponha em prática a vontade de escrever, sem se preocupar com quem irá ler ou levar seu livro para casa.

Também não se vigie pelas regras, padrões, modelos ou formas preestabelecidas. Essas coisas foram criadas por um construtor de muros, muito cruel e sem misericórdia, norma evacuada ao mundo para estagnar de forma opressiva. Enclausura em prisão escura e tenebrosa, como um aquário sem vida, o escritor que há dentro de cada um de nós.

Sem os códigos fixados pelos donos do circo, não há limites, e ninguém se perde em seus próprios caminhos, nem de si mesmo.

Explore suas defesas, não caia no vazio, fortifique o seu castelo. Proteja e maximize sua essência, ela é a estrutura que vai para o éter através de seus escritos. Não tenha receio. Não fique ressabiado. Escrever não aceita governação democrática. Há de ser decisão monocrática. Nada de igualdade, nada de leis, nada de sufrágio, só autodeterminação e pronto!

Aliás, diz poeticamente o cabo-friense Abel Silva, que se completou em canção na voz de Simone e depois na de Fagner: “só uma palavra me devora aquela que meu coração não diz”. Noutras palavras, liberar o fonema é mais fácil do que ser engolido por ele, por não o ter manifestado. Tal lição excede o estorvo da linguagem, transmite arte distinta com base no alento pessoal e espiritual. Só uma palavra pode ser dita em silêncio: aquela dita com fé, em oração.

Agora sabemos: Ninguém se perde na volta. Podemos pensar com liberdade sobre qualquer assunto, mas nossa declaração tem que vir do íntimo, natural, íntegra, formosa e sem pressa. O dom de escrever não nasce da progênie, nem da vontade da carne, nem do anseio dos outros, nem do convívio com ninguém, mas de nós mesmos, de nossa alma. Escreva despreocupadamente, maneie as palavras em mundo de imersão própria e perfeita, mundo cheio de fantasia e aventura.

Aventure-se! Liberte-se! Sem se preocupar com o espaço que irá ocupar. Nada de indignação diante da crítica injusta. São levianas. Aleivosas julgadas por lobos perigosos que, pelo fogo, será consumida. Tampouco, se engrandeça com a crítica de trombetas e alaridos sem densidade intelectiva, pois quando passar o efeito o despojo poderá decompor sua alegria em pó, ou esterco.

O Todo-poderoso faz escritores porque há muita gente necessitando de uma palavra. De um chamamento. De um sinal de vida. ”Esperança que se vê não é esperança. Quem espera por aquilo que está vendo? Mas, se esperamos o que ainda não vemos, aguardamo-lo pacientemente” (Rm 8,24-25). Tem gente que nem sabe, mas está aguardando pela sua declaração, mesmo nunca tendo ouvido falar de você, ou você dele. Foi Deus quem conversou ao coração do necessitado.

Despreocupe-se, tenha fé, aja sem medo, pois “onde há amor perfeito o medo não existe” (1Jo 4,18). O Pai do Céu age do seguinte modo: o que você disser – se humilde e perseverante na fé – será o necessário, sem precisar de outra qualquer explicação, para ser dito e ouvido. Escreva, sustentado em Deus, isso lhe trará arrebatamento de bem-aventurança e alegria.

Por outro lado, escrever buscando gloria é o mesmo que tentar vencer revolução fracassada. As novas gerações são rebeldes. Eternamente inglórias. Então, ouse escrever, sem pretensão de vestir Fardão, pois sua busca neste sentido provavelmente será ignorada, obscura. É melhor estar feliz de bermuda com os seus sonhos do que sob o inevitável desânimo da ansiedade, com roupas de gala no sonho dos outros.

Se for escrever um romance, contente-se, não existirá outra Maria Capitolina Santiago, a Capitu, como é conhecida. Doravante, os dias serão mais difíceis para os romancistas e leitores. Debruçado sobre o romance o escritor vivenciará inquietação, pois que personagem nenhum conseguirá mais a ambiguidade aceitável como aquela de Capitu, criação de Machado de Assis de 1899.

Também nenhum outro personagem, de agora em diante, demonstrará coragem, liberdade, fascínio e amor, como a metafórica gaivota, que acredita no próprio sonho e parte em busca do que deseja, mesmo quando tudo conspira contra isso. Aquele pássaro visionário de Richard Bach, a ave marinha chamada Fernão Capelo, no romance escrito na segunda metade do Século XX parece ter encerrado o ciclo para inspiração de notáveis personagens.

Esta discussão perdurará. Será interminável. Confessamos isso. Faremos se preciso for, penitências.

Aliás, como Fernão Capelo, se você usar palavras certas e éticas, sem malícia e perversidade, sem falar mal dos outros, sem egoísmo, sem se conformar com a limitação de sua vida – e sem precisar das acrobacias de uma gaivota – fará existir lugar no mundo para você. Seu sonho será alcançado. Lembre-se: você é escolha de Deus. Regozije-se. Tome a mão agora. Assuma a confiança divina. Partilhe suas narrativas. Realize o que deseja sua alma. Por fim, tal qual ensina aquele ditado que aprendemos com o velho Moahamed, ou Zaratustra, ou ainda o próprio Maomé – repetido em todo o gigantesco mundo árabe – deixe também sua voz se espalhar através da escrita. Isto lhe bastará e será seu laurel.

Expresse-se, rasgando a cortina do confinamento...

Escreva! Deixe o show começar.
MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 03/02/2021
Reeditado em 03/02/2021
Código do texto: T7175782
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