QUANDO EU ERA CRIANÇA

Eram quase cinco da tarde. Lá na parte mais baixa da Rua São Vicente se ouvia vozes masculinas cantando. Eram vozes muito potentes; tão potentes que o alcance da sua sonoridade não se restringia apenas as casas que ficavam ali ao seu redor. Ela ia muito além. Alcançava a Rua São Francisco, a rua da famosa Porteira da Lapa onde ficava a via de acesso a cidade de Nova Cruz; a Rua Emídio Gomes; Manoel Gadelha; Rua São João; e descambava pela Rua Princesa Izabel, e parte do Centro; também se ouvia no Sítio Lagoa de Pedras, Lagoa Nova... e onde não chegava pela sonoridade os conversadores de plantão se encarregavam de retransmitir o recado que era passado por aquele canto.

Nesse tempo, poucos carros e motos transitavam pela cidade. Este fato se somava a existência de menos barulho proveniente de sistemas de som e equipamentos domésticos, carrocinhas de propaganda entre outros. O silêncio, típico de uma cidade pequena, permitia o talentoso desfile da arte expressada por aqueles homens naquele momento. O que era de vizinhos – homens, mulheres, crianças, inclusive eu – corriam para ouvir bem de perto.

– Mãe o que é isso? Que música é essa?

– Isso é um aboio, meu filho!

Daí eu entendi o que aqueles homens faziam: eles estavam aboiando. E eles aboiavam com uma alegria e energia ímpares; como se estivessem tangendo e/ou chamando um rebanho para o curral. Mas eu não via nenhum rebanho.

– Mãe, mas cadê o rebanho? Eu não estou vendo gado nenhum!

– Calma meu filho! Você vai ver o ‘Boi de Rei’. Mais tarde...

Neste momento, o Sol já estava se pondo e os primeiros sinais de escuridão já apareciam. Os homens pararam com as suas cantigas – seus aboios – e se recolheram em uma certa casa da Rua São Vicente, casa esta que, segundo a minha mãe, pertencia a Neco do Rego e que seria lá, no terreiro da frente que o ‘Boi de Rei’ iria aparecer.

Saí correndo pra casa. Lá na cozinha, no velho fogão de lenha, mãe já estava com a panela no fogo cozinhando a batata (ou macaxeira, ou cuscuz, não lembro bem do que era neste dia). Já tinha feito o café e estava cortando uns pedaços de bofe (ou toicinho, ou tripa, ou voador, também não lembro qual foi a mistura neste dia). A janta ia sair cedo. Todos iriam ver o ‘Boi de Rei’ na casa de Neco do Rego.

Eu não era muito chegado a banho, mas nesse dia tomei um muito rapidamente. Eu também não queria ser o último a se secar com aquela única toalha para onze que era o número de pessoas lá de casa.

Tudo pronto. Janta no bucho e descemos para o local tantas vezes repetidos na minha mente. Chegando lá era aquele mundão de gente naquela festa medonha. Eu não largava da mão de mãe. Tinha muita gente. Um monte de gente inclusive que eu nem conhecia.

Abriu-se uma roda e lá veio um monte de homens – e algumas crianças – vestindo umas roupas cheias de fitas brilhantes e coloridas; na cabeça, chapéus enfeitados com fitas e espelhos redondinhos tipo os que meus irmãos mais velhos carregavam no bolso. Alguns dos que vestiam estas roupas coloridas portavam uma espada e juntos com outros com a cara tisnada cantavam, dançavam e sapateavam ao som de um instrumento de cordas tocado por um arco, do mesmo tipo que o meu tio-avô Antônio Roberto possuía – minha mãe já havia me dito que era uma ‘rebeca’. Um dos enfeitados também usava um apito para comandar o inicio e fim do toque e consequentemente, o do canto, da dança e do sapateado.

“Ô masseira minha masseira

Ô masseira das alegria

Os anjos do Céu se alegra

Quando estou na Padaria

Ai Joventina, cadê seu Juvená

É hora de tirar leite

e o bezerro que mamar...”

“Viva o dono da casa!

Viva!

E a família dele!

Viva!”

Que coisa linda! Que coisa maravilhosa!

Lá vinha os mascarados com umas roupas bem surradas e portando uma espécie de tocha composta por uma garrafa de vidro cheia de querosene e um pavio...; um deles carregava, na parte de trás e presa pela cintura, uma espécie de cela com alguns chocalhos pendurados, fazendo caretas, graças e medo a todos que compunham aquela roda. Os mascarados também teimavam, simulavam uma arenga com um dos vestidos com roupas enfeitadas de fita.

– Mas cadê o Boi? Eu quero ver o boi!

– Calma menino, ele vem já!

E tome teima; e tome cantiga; e tome dança! Aquela noite estava muito agradável; aquela noite prometia ser inesquecível.

Lá vem um boneco do pescoção...

“Chegou, chegou

chegou o Jaraguá...”

– Mas cadê o Boi? Eu quero ver o boi!

Lá vem o boi... Brabo! Fazendo rodopios e levantando uma enorme poeira do chão. A roda, já um pouco esvaziada, se abriu ainda mais...

“Meu boi bonito, meu boi valentão

Faço uma venda bem feita para seu João...”

Nessa hora, muitos trataram de se esconder ou simplesmente de ir embora principalmente, aqueles de menos posse. Já os figurões abastados das ruas acima citadas, faziam questão de ficar e ‘pagar pela compra’ do Boi.

Hora de ir embora dormir. Saímos todos pra casa. Eu com a maior satisfação em ter visto o Boi de Reis, me divertido e aprendido a gostar desta arte tão nossa.

Toda vez que se ouvia um aboio lá para as bandas da parte mais baixa da Rua São Vicente – ou qualquer outra rua da cidade – já se sabia que era a festa do Boi de Reis.

Hoje, sei que os homens vestidos com roupas enfeitadas de fita são os galantes; os mais destacados são o mestre o contramestre. Os mascarados são o Mateu e o Birico – e a Catirina quando se apresenta com ela.

Hoje, sei também que esta arte ainda sobrevive, não da forma que gostaríamos, mas sobrevive.

Benildo Nery