O sorriso e as pernas vãs.

Alguma luz havia naquele peito tão fino. Uma luz com aspectos de antiga melancolia, dos tempos da pobreza quando da idade infantil. Houve um tempo de comida parca, de um cotidiano cinzento. Um cinza que ela ainda gostava e queria as suas roupas assim.

Não conseguiu ter vontade própria aquela tia. A sua mãe lhe roubava o oxigênio numa voracidade infinita, cotidiana. Não lhe dava palavras, direitos e lhe roubava a cama quando o marido deveria estar ao seu lado. Sim, aquela mãe dormia na cama ao seu lado... o marido, que não sabia ou não conseguia se impor, dormia no sofá. Todas as noites, anos a fio.

E nada de prazer: nenhum. Um almoço com uma carne de porco, um vinho tinto, uma bola de sorvete de creme ou mesmo de abacaxi. Nada! Para a velha tudo era motivo de proibição. Tudo era negação. Viver era negado, pensar, plenejar, acreditar, sonhar... o Não era sempre o soberano senhor de todas as coisas e situações.

Numa noite de setembro a velha faleceu repentinamente. Infarto agudo do miocárdio. Achei o diagnóstico chique e não sabia do que se tratava. Sabia apenas que ela havia morrido e que a tia poderia começar a respirar, a construir, a colocar violetas ao menos na janela da sala daquela casa de uma pacata rua do bairro do Ipiranga. Mas não. A alma da velha havia lhe penetrado as entranhas com tamanha intensidade e força que a minha tia nunca chegou a comprar o seu vasinho de violetas, um pote de sorvetes ou uma pizza caprichada de mussarela. A sopa rala com uma única batata havia-lhe encharcado o pensamento, as vísceras, o paladar. O chá de erva doce ocupou irremediavelmente o lugar de um vinho tinto e o queijo branco em pequenos pedaços com bolacha água e sal se ajeitou e se acomodou no seu estômago no lugar de um naco de lasanha ou de torta de maçã.

A vida acinzentada lhe roubou as forças das pernas. Ela parou de andar. Franzina, sem entusiasmo, em cadeira de rodas, de cabelos brancos, ainda lembrava o passado com amorosidade e ternura.

A minha tia partiu há trinta e quatro anos sem ter respirado o perfume dos manacás, sem ter visto a brancura de uma pequena árvore de mirra, sem ter tomado um prazeroso banho de mar. Ela não viveu a euforia de um carnaval, não sentiu a brisa numa tarde de primavera. A tia não sentiu o prazer de jantar numa cantina italiana no bairro do Bixiga. Ela não foi ao teatro, não viu uma única peça da Fernanda Montenegro e nem um musical da Bibi. Ela não comeu pêssego em calda e nem encheu a boca com brigadeiro e granulado.

Eu amava a minha tia. Levei pão italiano para ela algumas vezes. Levei alguns doces e ela os comeu sofregamente. Uma vez por semana eu lhe dava alguma coisa que cheirasse a vida.

A minha tia partiu. Ela não viveu nada, acho que nem contemplou as estrelas e nem vibrou numa noite enluarada... mas ela sorriu.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 12/02/2021
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