Para toda a minha vida...

Naquelas manhãs, as promessas eram de simplicidade com ternura. Não havia lugar apropriado para a melancolia, a incerteza, dramas de qualquer ordem. Era de manhã. Como pano de fundo o cheiro do café coado na hora e algum pão assado, quem sabe, num forno a lenha e havia manteiga.

Naquelas manhãs não se ouvia barulho de carros ou medo de algum eventual ladrão que pudesse nos ameaçar forçando a fechadura da porta de entrada. Ou da cozinha. Havia o trissar das andorinhas ou qualquer outro pássaro viajante a pousar no pessegueiro daquele quintal , onde, à noite, alguns vagalumes apareciam para nos dar um espetáculo: eles haveriam de ficar dentro de um vidrinho para iluminar o nosso quarto pela madrugada, dizia a prima ainda criança.

À tarde – e as tardes eram longas e suaves – o passeio pela praça da igreja. Os bancos, calados, à nossa espera com os anúncios das lojas e da farmácia da cidade. Não havia ameaça. Nenhum perigo. Um pernilongo atacava as nossas pernas, mas era um ataque singelo, não invadia as nossas vísceras. Apenas um pouquinho do nosso sangue para continuar vivendo e voando e fazendo a sua parte na natureza, que eu nunca soube qual era. Uma coçadinha e estava tudo resolvido.

Às vezes o padre passava pelo jardim da igreja com sua batina preta e com algum pó daquela terra lindamente vermelha. Aquela terra roxa, quer dizer “rossa” pelos italianos que povoaram parte da região no início do século passado. Uma terra poeticamente vermelha, pronta a dar ótimos frutos, exigindo muito trabalho e paciência para que a natureza desse as suas respostas. Correndo, íamos beijar a mão do padre Ângelo. Eu não sabia a razão dessa correria todas as vezes que ele despontava por ali, mas corríamos e voltávamos a brincar entre risos, tombos e busca de novos esconderijos. “Te pegueei, te pegueei. Agora está com você. Bate cara. Um,dois,três... lá vou eu!”

O sorvete de groselha na geladeira do bar do seu Chico, bar com piso de madeira gasta pelo tempo, fazendo um “reeeec” a cada pisada. No balcão, uma gaveta com Bala 7 Belo, Dadinho e pirulitos embrulhados com papel colorido. Um espetáculo!

O sorvete de bola, de massa, era mais caro. De vez em quando só, principalmente com uma camada de chocolate - a moreninha.

Carne de porco no almoço. Às vezes galinha caipira com arroz cozido em panela de ferro. Doce de banana, claro, feito em casa. Ou doce de abóbora. Não precisava ser com coco. Suco de uva, mas só na casa do tio mais abonado. Aos domingos, Tubaína gelada no almoço e não sobrava para a janta.

Era uma alegria sincera e macia quando o tio fechava a farmácia e entrava em casa para o nosso convívio. Sempre alguma coisa engraçada havia e ele nos contava. Na farmácia, os poucos medicamentos davam conta das necessidades daquela freguesia humilde. A salinha de injeção não me provocava medo, mas me angustiava ouvir alguma criança chorando ali dentro. E eu gostava de pegar um pouco de durex e colar florzinhas no banco da igreja, banco que ostentava o nome da farmácia dos Irmãos Sartini.

Não se falava mal das professoras, mesmo das aulas de Matemática. E elas eram sempre bravas, mas, mesmo assim, as amávamos e se tornaram inesquecíveis e especiais, como especial eram as nossas vidas, com presença, com sentimento de pertencimento a um mundo com beleza, lúdico, amorosamente possível.

Tal como Cecília Meireles, hoje me pergunto: “em que espelho ficou perdida a minha face?”

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/02/2021
Reeditado em 13/02/2021
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