18 de Fevereiro

Antes de toda grande mudança há um importantíssimo milésimo de segundo que é a despedida inconsciente da vida como conhecemos - no milésimo seguinte, já não somos mais os mesmos. Se tivéssemos conhecimento e poder sobre esse exato momento provavelmente congelaríamos o tempo nele.

Nunca há como saber, de fato, quando tudo vai mudar para sempre.

‌O meu primeiro milésimo de segundo, que precedeu uma dessas reviravoltas tempestuosas, foi aos 6 anos enquanto corria no quintal da minha avó. Era um dia bonito de verão, com o Sol brilhando no céu e toda a disposição enérgica de uma criança que acredita que vai mudar o mundo quando crescer. Em tese, era só mais um dia. Até que ouvi minha tia gritar e recebi a pior notícia de todos os tempos: tinha perdido meu irmão mais novo - que eu sequer sabia que já havia nascido. Em um dia, minha mãe saiu de casa grávida, com o bebê chutando minha mão, na promessa de retornar em breve com um novo membro da família - muito pouco tempo depois, eu já tinha que dizer adeus a uma das pessoas a quem mais ansiei por conhecer.

Não esbocei nenhuma reação natural - mas pensei que deveria demonstrar alguma coisa, então disse "não" e permaneci em silêncio por segundos eternos. Não adiantava que eu dissesse que não. Eu não era nada diante daquilo, não havia nada que eu pudesse fazer. Era a vida quem estava dizendo "não" para mim. Quando entendi, chorei.

Chorei aos seis anos, aos sete, aos oito, aos nove e às vezes, ainda choro aos vinte. Já chorei porque ninguém me entendia, chorei porque todo mundo desprezava as minhas saudades já que eu "nem tinha convivido com ele", chorei porque não sabia parar de chorar, chorei porque meus pais choraram muito, chorei porque precisei tentar esconder meu choro para não vê-los ainda mais preocupados e tristes.

Naquele milésimo de segundo, enquanto eu dava minha última risada correndo no quintal, minha vida mudou para sempre. Precisei aprender a ter a fé que a minha mãe tinha de que Deus sabe de todas as coisas e sempre tem o melhor para gente; precisei tentar descobrir porque eu tinha pedido um irmão, Ele tinha me dado e depois tirado de mim. A sensação que tenho é que comecei a crescer naquele dia.

O fato é que depois daquele importantíssimo milésimo de segundo, muitos outros vieram, quase todos sem aviso. Já me vi deixar de ser eu para ser obrigada a me tornar uma versão mais madura de mim inúmeras vezes. Nem todos os saltos foram tempestuosos, mas acredito que tudo que traz lágrimas deixa marcas mais visíveis.

A cada dia mais, descubro que viver é estar na iminência da reviravolta: não importa quantos planos façamos, o quanto nos dedicaremos, quão seguros pensemos estar - tudo é inconstância e muito pouco depende de nós. Apesar de certo temor, aprendi a ver uma beleza característica nessa imprevisibilidade: é a vida nos lembrando quem é que manda e declarando, por si só, novas estações.

Quanto ao meu irmão, hoje é 18 de Fevereiro e a cada 18 de Fevereiro vou me lembrar do meu primeiro milésimo de segundo - mas muito mais que isso, vou trazer à memória o motivo dele, que é bem mais que a própria morte: o garoto que habitou meus sonhos, mudou minha vida e me fez crescer sem nunca ter podido me olhar. Não importa o que uma, duas ou duzentas milhões de pessoas digam sobre ele ou sobre nós: eu sei que ser sua irmã foi uma dádiva enorme, que eu sinto muito a sua falta e que o amo absurdamente. De reviravolta em reviravolta, vou trilhando o caminho para o Céu onde sei que ele já está. A morte só criou um gap de separação - mas ela não é páreo para o amor de verdade, a partir do qual, com o mesmo Jesus que me acompanhou e me ensinou tanto em todas essas histórias, verei meu irmãozinho algum dia. Nunca é o final. Sempre haverá o segundo seguinte.