A DESASTROSA CAÇADA NO LAGO DE AYAPUÁ

A DESASTROSA CAÇADA NO LAGO DE AYAPUÁ

Causos Amazônicos

Autor: Moyses Laredo

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (RDS) está dividida entre os municípios de Tapauá (30,35%), Coari (1,37%), Anori (40,11%) e Beruri (28,17%) no estado do Amazonas. Abrange uma área de 1.008.167 hectares (2.491.230 acres). O nome vem da língua tupi: pi'á (tripas, coração ou estômago) e wa'su (grande, largo), e significa "grande coração do Purus". Existem cerca de 85 comunidades de pessoas na reserva, que vivem de pesca, agricultura, caça e extração de madeira e produtos não madeireiros. "Lago do Ayapuá", em área que abrange parte dos municípios de Anori, Beruri e Tapauá localizados às margens do rio Purus e grande parte do município de Anori, localizado nas proximidades do rio Solimões. O Lago de Ayapuá situa-se na região do baixo Japurá. Está localizado na terra indígena da etnia Mura, Amazônia Central. Lugar onde é de exclusiva finalidade para a caça de subsistência na RDS - Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Dista de Manaus, cerca de 223 Km, é uma região riquíssima de recursos naturais, uma vasta variedade ictiológica, ampla fauna, com abundância de patos e marrecos. Estamos descrevendo a atualidade.

Nossa história começa lá pela década de 70, quando não havia nenhum efetivo controle, proibição ou fiscalização por parte do poder Estadual ou Municipal. Os mais abastados, transitavam livremente em seus barcos de lazer, equipados com todo conforto, inclusive com armas, como espingardas de cartuchos de dois canos. A maioria dos barcos se fundeavam, nas margens do extenso lago do Ayapuá. Nessa época, um grupo de amigos do futebol dos sábados à tarde, que se reuniam depois da “pelada”, no bar do seu Zé Caseiro, cujo apelido, ganhou porque tinha três casas, todas com mulheres e filhos diferentes. A ida ao dito bar depois do jogo, era sagrado, lá serviam o famoso tira-gosto, era o par perfeito, peixe frito com cerveja bem geladinha, enquanto alguns jogavam um animado e barulhento carteado, um deles, conhecido como Truco (mistura de turco com truculento) era o mais viciado. De lá, saiu a ideia de fazerem uma caçada de patos e marrecos, misturado com pescaria, no lago de Ayapuá, a abundância de caça e pesca era forte chamamento. Conversa vai, conversa vem, apelidos daqui outros dali cada um tinha o seu, - “Diz aí, Tonisso”, outro que recebeu esse apelido por concordar respondendo sempre: “tô nisso!”. Tonisso levantou o polegar mostrando a unha lascada de tanto destampar latinha de cerveja, afinal, todos se conheciam bem, na maior intimidade, acabou sobrando para um dos amigos, o Mitoso (metido a gostoso), que tinha acabado de contar que adquirira um barquinho regional tipo “tó-tó-tó”, porque da chaminé, saía um tufo de fumaça escura circular, acompanhado do barulho característico: “tchu-tchu-tchu”, (mesmo ruído de estralar a língua nos dentes, ao se chamar cachorrinhos) assim que o motorzinho Yanmar marítimo de 7.5 Hp funcionava. O barco era novinho em folha, já batizado e registrado na Capitania dos Portos, com o nome de “Mimoso”. A turma, se disporia a rachar todas as despesas, a ideia foi se materializando conforme a conversa evoluía, inversamente proporcional aos pratos de tira gosto de sardinhas fritas que involuía, ou seja, a conversa aumentava e os peixinhos fritos sumiam.

Chegou o grande dia, tudo arrumado, mantimentos, equipamentos, combustível, Mimoso no jeito, partiram da Marina do David, na zona oeste de Manaus. Na ida, o pessoal do baralho foi logo se acomodando na única mesinha do Mimoso, um dos amigos, justamente o Mitoso, que não gostava do carteado, optou por outra distração, pegou sua espingarda vinte e dois e começou a praticar tiro ao alvo, já bem depois da entrada do Janauacá, mirando as esbeltas canelas das Jaçanãs, que saltitavam, em cima das finas folhas de Vitórias-régias, abundante nas margens do rio Solimões, para cada tiro errado, davam um gritinho, fazendo pouco do atirador, o saldo final, foi que ele não acertou em nenhuma, até que um dos amigos, gritou, - “Cuidado, você pode acertar em alguém”, pronto! Acabou a brincadeira.

Dos cinco da mesa de baralho, só um deles que atirava bem, o Jassei (Já sei! – porquê de tudo sabia um pouco) o outro, era o Mitoso, que de dez patos, acertava um, mas era o segundo melhorzinho deles.

Depois de longas dezoito horas navegando lentamente rio Solimões a dentro, chegaram ao majestoso Lago Ayapuá, de tão imenso, a vista não alcançava a outra margem, os barcos que lá estavam, sequer dava pra ler suas inscrições dada a distância que cada um se mantinha do outro. Animados, o seu Zé caolho, o comandante do Mimoso, que havia perdido um olho numa briga com espeto de churrasquito, fundeou o barco numa pequena enseada, como sempre se faz, para proteção de temporais, e como chegaram tarde, trataram de preparar o rango e logo foram dormir mais cedo. Na primeira madrugada, por volta das quatro da manhã, o seu Zé caolho, começou o rebuliço atiçando as redes de todos, que na pressa, e a pouca luz, quase ninguém encontrava suas coisas, o barco pequeno, aumentava o corre-corre, depois de tudo pronto, pularam no bote, outro destempero, desajeitados, botas pesadas, peso só de um lado, vira não vira, uns com facas de ponta e espingarda cano duplo, caniços embolados com munição, caindo e rolando no fundo do bote, ainda com água, (alguns cartuchos molharam irremediavelmente), mas, conseguiram embarcar todos e seguir em direção ao local dos patos. O Jassei, os guiou para se posicionarem na rota deles, ele tinha estado algumas semanas antes caçando naquele lugar, sabia exatamente o percurso dos patos, que criam uma rota mental, como uma carta de aproximação visual da aeronáutica, de anos e anos naquele caminho, e sempre descrevem o mesmo trajeto, esse ritual passam para os mais novos, pela natureza do acompanhamento do grupo. É interessante, basta observar por onde eles fazem a aproximação e montar as esperas, que é tiro certo.

Em terra, à procura de abrigos, andando com lamas nas botas, faziam-nas pesarem três vezes, dificultavam sobremaneira a caminhada. Alguns deles, ao caminhar na lama, aqui acolá, tropeçavam e perdiam o equilíbrio tombando nas poças d’água, com os bolsos cheios de cartuchos, a metade molhou, outros, usaram suas espingardas como muleta, se apoiando na culatra. Assim que se aproximaram da margem, ainda no crepúsculo do amanhecer, um grupo que ia à frente, mandou chumbo nuns pobres urubus que dormiam sossegados nos seus galhos altos, dando a desculpa de que, de longe, pareciam patos empoleirados, não acertaram nenhum, os pobres dos urubus, acordaram no maior susto, saíram voando espavoridos pra bem longe dali. Outros, meteram chumbo nuns arbustos cheios de periquitos-da-Amazônia, que pelos gritos, achavam também que já era os marrecos, foi penas pra todo lado, ficou um lastro no chão, também não feriu nenhum deles, os caras eram bons de ponto. Graças ao Jassei, que interferiu a tempo, o cara que se apoiou na culatra, não deu nenhum tiro, sua arma estava entupida até o talo, foi limpada pelo Jassei que viu a presepada dele. Lá para as tantas um mundo de marrecos verdadeiros, surgiu de repente, como nuvens que escureceu tudo, por sobre suas cabeças, em voos de aproximação, com o bater das asas, em modo de freio aerodinâmico, estavam se preparando para pousar na lagoinha por trás dos araçazeiros, onde o pessoal estava camuflado, a fuzilaria começou na hora, cada um por si, era chumbo pra tudo que é lado, o perigo era o “caçador” acompanhar o pato em voo de descida, ainda sob sua mira no ar, e, acertar algum amigo no caminho da visada. Pensando assim, muitos correram pra se abrigar por trás das árvores mais frondosas, mesmo assim, a “chumbarada” de retorno, dos tiros perdido para o alto, caiam sobre seus ombros e cabeças igual ao estalar de pipocas na panela. Após todos bem abrigados, aguardavam a segunda onda dos patos, porém, o converseiro alto e o ascender constante de cigarros, identificados pelos brilhos das pontas em brasa, fez os patos quebrarem as asas e mudarem suas rotas. Nessa madrugada, mesmo com o tiroteio medonho, não abateram nada de patos e nem de marrecos, notaram que dois dos amigos, resolveram tirar a camisa de manga comprida de camuflagem de selva e mostrar o peito amarelo e vermelho das camisetas, aí piorou de vez a situação.

O Jassei, o cara que atirava muito, vendo que daquele grupo de “cachaceiros”, não iria sair nada, muito esperto se embrenhou na mata no mesmo tempo em que o grupo estava se ajeitando para caçar os patos, levou consigo a “Matilde”, sua doze de sete cartuchos, que o acompanhava há anos, pertenceu ao seu pai. Passou a mão numa lanterna e quando retornou trouxe duas galinhas d’angola e um unicórnio, a ave tem o porte de um peru, com pernas longas e pés de dedos grandes, com dois esporões carpianos em cada asa, além de um longo espinho córneo no alto da cabeça, nome científico: Anhima cornuta, também é conhecida como alencó, alicorne, anhima, Iúna, cametaú, cauintã, cavintau, cavitantau, cuintau, inhaúma, inhuma, licorne, unicorne e unicórnio, possui uma carne vermelha no peito, bem saborosa para quem já a comeu. O Mitoso, que treinava nas jaçanãs, teve melhor sorte que os outros, se afastou e de onde estava, fez a mira certa (um palmo à frente do bico) e conseguiu derrubar uns dois patos gordos e corados, os demais, como disse, zero. O almoço ajantarado nesse dia, foi bem diversificado.

No dia seguinte, volteando pelo lago na voadeira, o Tonisso com o Truco, saíram bem cedo, de longe viram uma enorme malhadeira armada em posição de pesca. O Truco, matutando, perguntou: - “Sabes manusear malhadeira Tonisso?” – “Claro, vamos lá ver”. Estava cheia de peixes, conferiram o peso puxando por uma das boias, até um pequeno pirarucu se debatia, ficaram se olhando procurando saber o que o outro faria, quando o Truco, sai dos fundos da canoa já com a faca na mão e começou a picotar a malhadeira alheia e a danar-se jogar os peixes embrulhados ainda com os pedaços da rede cortada, dentro da canoa, no furor do “assalto” saiu-se com essa, - “Sou objetivo, qual é o problema?” O pobre do Tonisso ficou sem ação, se pôs a vigiar, quando de repente, deu um grito de aviso, - “Puta-que-pariu, lá vem o dono, vamos nos mandar” ligaram o motorzinho de popa, e se arrancaram com o saque, deixando a malhadeira em petição de miséria. Todos sabem que, não se faz isso, há um código de honra entre os pescadores, ninguém viola a malhadeira alheia, por isso, os donos saíram no encalço deles, pena que vinham à remo, e os ladrões, à motor, mesmo assim, deram uns tirinhos que resvalaram na água, levantando salpico neles, saíram direto para o Mimoso, que felizmente estava do outro lado da enseada, os perseguidores não o viram. Ao chegarem, retiraram o motor e os peixes, subiram o bote e o emborcaram em cima do toldo, jogaram os peixes, do jeito que estavam, no freezer da popa e ficaram na deles, quietos.

Era umas seis e trinta, já escurecendo, quando os caras da malhadeira, encostaram no barco, brandindo cada um deles, uma doze, dizendo muito revoltados, - “Vocês viram os filhas-da-puta que cortaram nossa malhadeira, passar por aqui?”. Sorte que o Mitoso, dono do barco, conhecia um dos caras, era um dos fornecedores de areia para sua construtora, foi logo dizendo, - “Calma Raimundinho, aqui não tem ninguém capaz de fazer isso não”, até o nosso bote não está na água, devem ter ido lá pra outro rumo, apontando para a “boca” do igarapé do Socó mais adiante, pois achava sinceramente que tinha sido uns caras que ele viu passar mais cedo, a resposta dos caras foi, - “Tá bom, Dr. desculpe aí”, reconheceram o patrão.

Depois o Mitoso, foi dar um cochilo, hábito dos nortistas. Na hora do almoço foi abrir o freezer para pegar umas carnes, quando viu um bando de peixes geladinhos, todos envoltos ainda em pedaços de malhadeira. Aí não teve jeito a confissão aconteceu, veio na hora a figura dos dois que haviam saído no bote, Tonisso e Truco, caráio, quase que essas porras criaram um conflito terrível. Chamou os dois para uma conversa os quais não negaram, então Mitoso, pediu que fossem pagar os estragos da malhadeira aos proprietários, os dois se recusaram dizendo que depois de ter negado, ele ficaria mal diante deles, e nós, poderemos sofrer represálias. O Mitoso, sério como era, botou o bote n’água e foi atrás dos caras da malhadeira, conseguiu encontra-los, tiveram uma conversa e resolveram na paz o problema, diante de uma indenização e alguns pedidos de desculpas.

Molar
Enviado por Molar em 18/02/2021
Código do texto: T7187730
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.