Como uma luz no tempo, naquele tempo...

Não havia muito barulho. Aparentemente nada de ameaçador naquelas tardes.

Naquela biblioteca ficava ela à disposição dos raríssimos visitantes. Silêncio. Uma biblioteca composta por livros dos antigos irmãos maristas. Brochuras de capas austeras. Muitos deles cheirando a guardado há décadas e lotavam as estantes envidraçadas constrangendo a ignorância daqueles que se aventuravam a folheá-los.

Nenhuma revista, nada que pudesse estimular os alunos a uma reflexão, ao debate, sequer à curiosidade e desejo de aprender. Tudo taciturno, caduco, cinzento.

Mas foi ali, nesse ambiente hostil que tive boas conversas com a bibliotecária. Na realidade, era uma colega que atuava como tal. Aluna bolsista, era a única negra naquele colégio de elite. Quer dizer, uma pseudo elite. Num bairro de origem operária e de forte presença de imigrantes italianos, estudar num colégio religioso era sinal de algum parco privilégio. Então, para custear os seus estudos, ela trabalhava ora na venda de material escolar, ora na biblioteca, enfim, onde houvesse alguma necessidade. Moradora de um cortiço numa rua próxima, jamais perdeu o bom humor e sempre foi dona de uma gargalhada visceral, vibrante, convidativa a viver.

Foi com ela que aprendi a ouvir a Zezé Mota. Aliás, um dia ela conseguiu comprar um disco de vinil da Zezé e depois me emprestou. Eu ouvia com carinho e atenção naquela radiovitrola Telesparker, que era o orgulho da casa humilde dos meus pais. Com a Ana Isabel aprendi a compreender a vida sem a amargura do olhar do racismo, do preconceito, da ignorância. Ela sabia muito, sabia admirar a beleza das coisas, das situações e das pessoas.

A vez que me senti menor na vida foi quando combinamos de sair e choveu. Ela me ligou do telefone público dizendo que não poderia sair porque a sua casa havia inundada. A sua casa se resumia a um quarto miserável naquele cortiço da rua Ana Néri e eu me chateei muitíssimo. Retrato a minha pequenez: na época, meus quinze anos, fiquei chateada por não sair e não notei a dimensão do sofrimento e da angústia que seria ter aquele pouco destruído pelas águas. Esse pouco se resumia a um colchão e a um fogão.

Encontrei uma forma de me retratar: tempos depois, ela trabalhando no Banespa, alugou um apartamento. Eu e outra amiga nos prontificamos a pintar a nova morada. Num sábado à tarde, lá fomos e tratamos de pegar os pincéis, os rolinhos e pintamos tudo, mas a tinta não deu para o banheiro...

Frequentei muito essa nova casa com alegria. Mal tínhamos onde nos sentar, mas ela sempre soube receber muito bem os visitantes. Foi ali que, certo dia, comi o arroz, feijão e bife mais bem feitos da minha vida. Inesquecível almoço aquele. E quando ia ao Peg Pag defronte ao apartamento, se perguntava “o que quererei?” e ria a valer da sua própria fala. E quando realizávamos algo interessante ou tirávamos boas notas, dizia “nós somos assaz por demais”.

Depois de tantos anos, de tantas saudades, de tanto respeito... Ana, onde anda você?

Estudou Psicologia e eu vibrei por isso. Foi minha madrinha de casamento e ninguém mais importante que você naquele momento. Você se casou com um ex padre (só você mesmo, Ana!) Gostava de dizer que era maravilhoso transar com padre. E ainda dizia: recomendo! E ria, ria...

Naqueles tempos, Ana, de tanta opressão, dentro e fora de casa... aliás a opressão estava em alta em todos os lugares: em casa, na Igreja, na escola... no Estado então, cruz-credo!!!! E você gostava de rir. E nunca deixou de rir com entusiasmo!

Resolvi hoje ouvir a Zezé Mota aqui mesmo no youtube para me lembrar de você com toda admiração e respeito. Por você e pela Zezé.

Eu deveria ter lhe ouvido mais, ficado mais perto da sua sabedoria, do seu jeito bom de lidar com as tramoias da vida. Você não dava espaço para a tristeza, para o abandono, para a desilusão. Você era forte, de raça, pronta para o embate.

Meus parabéns, Ana. Eu lhe desejo toda a sorte do mundo. Sucesso, vitórias, alegrias e vida muito longa, porque você merece.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/02/2021
Reeditado em 20/02/2021
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